|
Segunda-feira, 7/12/2009 Autobiografia musical Gian Danton Até os 14 anos, mais ou menos, eu costumava dizer que não gostava de música. As referências que eu tinha a respeito eram os bregas que se ouvia em casa... e Erasmo Carlos, nos dias muito eruditos. Acho que tinha também um disco do Roberto Carlos, do início da fase decadente. Meus dois tios e meu padrastro eram caminhoneiros e por isso compraram o disco que tinha o famoso refrão: "No volante eu penso nela/ Já pintei no pára-choque um coração e o nome dela". Então eu não gostava de música. Até que um dia estava na casa de um amigo e ele me chamou no corredor para ouvir uma música que tocava no rádio de sua irmã: era "Eduardo e Mônica", do Legião Urbana. A canção me arrebatou como se eu estivesse passando por um êxtase estético. Eu nunca havia ouvido algo que falasse de maneira tão singela e inteligente do que sentíamos. Nós éramos como o Eduardo, tão indecisos sobre a vida e sobre todas as outras coisas. A canção fez tanto sucesso entre nós que costumávamos cantá-la na frente do colégio, antes da campainha tocar. Com o tempo fui conhecendo outras músicas do Legião Urbana e aprendendo que elas podiam expressar o que sentíamos, fosse alegria ou tristeza. Entenda: até então a música, para mim, era uma total desconhecida. Um dia minha namorada (e atual esposa) gravou para mim uma fita com um mix de músicas que achava interesantes. No final da fita havia três músicas de Raul Seixas. O restante, daquele lado, era Milton Nascimento. Devolvi a fita e pedi para gravar o lado todo com o Raulzito. Eu o descobrira algum tempo antes, numa oficina de bicicletas. O pneu furou e, sem ter o que fazer, fiquei lá, ouvindo o que tocava no som da oficina. Era justamente "Ouro de Tolo". Fiquei impressionado ao perceber que, apesar de muito popular, a música tinha uma letra genial, uma bela reflexão filosófica sobre o sentido da vida. A letra era a personificação do que deveria ser a atitude de um artista: "Eu devia estar contente porque eu tenho um emprego Sou dito cidadão respeitável e ganho quatro mil cruzeiros por mês Eu devia agradecer ao Senhor por ter tido sucesso na vida como artista Eu devia estar feliz porque consegui comprar um Corcel 73 Eu devia estar alegre e satisfeito por morar em Ipanema Depois de ter passado fome por dois anos aqui na cidade maravilhosa Eu devia estar contente por ter conseguido tudo o que eu quis Mas confesso abestalhado que eu estou decepcionado". Muito tempo depois, quando tive contato com o livro O mundo de Sofia, lembrei de Raulzito ao ler a descrição do maravilhamento e inquietude diante do mundo que deveriam caracterizar o filósofo. Estava tudo ali, em "Ouro de Tolo". Raul Seixas me mostrou que músicas podiam falar de qualquer assunto, de filosofia à política e ainda assim serem populares. Mostrou também que a popularidade não significa falta de qualidade. Aos 19 anos eu já conhecia algo de música, mas ainda não havia sido apresentado aos Beatles. Um dia uma professora de redação jornalística me convidou para ir à casa dela. Chegando lá me deparei com uma enorme coleção de CDs e LPs. Eu nunca tinha visto um CD. "Escolhe um disco", ela encorajou. Escolhi Sgt. Peppers, dos Beatles, até hoje o meu disco predileto do quarteto de Liverpool. Nunca poderia imaginar o êxtase que me arrebatou ao ouvir as músicas. Era como se, ao embalo de "Lucy in the sky with diamonds", eu viajasse nos acordes. Legião Urbana e Raul Seixas eram bons, mas Beatles eram divindades que compunham músicas com poder sobrenatural. Lembro que pouco tempo depois conversei com um amigo sobre o assunto e ele riu: "Agora que você descobriu os Beatles?!". Antes tarde do que nunca. Juntei o pouco dinheirinho que tinha e comprei, em loja, três grandes discos do quarteto: Sgt. Peppers, Revolver e Magical Mistery Tour em fita cassete (sim, naquela época vendia-se discos em fitas cassete). Nessa mesma época, descobri Pink Floyd. Quem me apresentou essa banda de rock progressivo foi o meu compadre Bené Nascimento. Hoje ele assina Joe Bennett e desenha histórias para a DC Comics, mas na época ele era só um desenhista despontando no mercado nacional e meu principal parceiro em histórias de terror. O tom depressivo das músicas do Pink Floyd combinava perfeitamente com o horror denso e psicológico que fazíamos. Combinou tanto que virou quase uma obsessão. Ouvíamos Pink Floyd de manhã, de tarde e de noite. Em 1993 eu me mudei para Curitiba e sofri com a frieza do povo local. Curtibanos são muito simpáticos, mas também pouco calorosos. Para quem vinha de Belém do Pará (um lugar onde se faz amizade no ônibus), foi um choque. Nessa difícil adaptação, ajudou muito uma música: O Mundo ainda não está pronto, do Pato Fu. "Quem acha que o mundo é tudo na vida Infelizmente não sabe de nada Inclusive eu também não sei Inclusive eu também não sei Mas pelo menos eu estou, eu estou Eu estou aqui gritando: AAAHHHHH, eu estou aqui gritando". Uma letra simples, mas que permitia várias interpretações. O grito poderia ser o meu grito diante da nova situação. Nessa época, claro, eu desprezava Roberto Carlos. Brega era o mínimo a dizer do homem que, na minha infância, bradava um refrão para caminhoneiros. Então, um dia, quando ainda morava em Curitiba, ouvi uma versão da música "Todos estão surdos" cantada por Chico Science e me surpreendi. A letra era muito boa, filosófica até. Não parecia o mesmo Roberto Carlos que fazia músicas para gordinhas ou mulheres de óculos. "Outro dia, um cabeludo falou: 'Não importam os motivos da guerra A paz ainda é mais importante que eles. Esta frase vive nos cabelos encaracolados Das cucas maravilhosas Mas se perdeu no labirinto Dos pensamentos poluídos pela falta de amor. Muita gente não ouviu porque não quis ouvir' Eles estão surdos!". Isso me levou a pesquisar melhor a discografia do "rei". Comecei por um disco mais antigo, da década de 1960, Roberto Carlos em ritmo de aventura. As letras não eram geniais, mas a música era ótima. Um bom rock. Aí fui comprando os discos na sequência. Quem for ouvindo a obra de Roberto Carlos cronologicamente descobrirá que o cantor passou por uma evolução óbvia. Cada disco da década de 1970 parece ser melhor do que o outro. O som ficou menos rock e se aventurou por outros ritmos e as letras ficaram mais reflexivas. Como as letras sempre foram o que mais me chamou atenção, o discos de RC da década de 1970 eram um profundo campo de descobertas. Havia letras com narrativas paralelas, como em "Rotina", em que acompanhamos o dia a dia de um casal apaixonado: "Estou chegando para mais um dia De trabalho que começa Enquanto lá em casa ela desperta Pra rotina do seu dia Eu quase posso ver a água morna A deslizar no corpo dela Em gotas coloridas pela luz Que vem do vidro da janela". E havia letras com fundo psicológico, como em "Traumas": "Minha mulher em certa noite Ao ver meu sono estremecido Falou que os pesadelos são Algum problema adormecido Durante o dia a gente tenta Com sorrisos disfarçar Alguma coisa que na alma Conseguimos sufocar". Roberto Carlos, na década de 1970, tornou-se um compositor reflexivo, com letras ricas em interpretação que vão muito além das obras mais famosas. Um verdadeiro tesouro que um dia ainda será redescoberto. Curiosamente, eu havia voltado para o músico que odiava durante a infância e redescoberto sua obra. Alguém não pode fazer sucesso durante tanto tempo, para públicos tão diversos sem ter um nível de qualidade. Claro que a maioria dos ouvintes fica nas camadas mais externas do romantismo fácil, mas há muitas outra camadas à espera de análise, reflexão e, claro, sentimento. De Legião a Roberto Carlos, passando por Raul Seixas e Beatles, minha caminhada de descobertas musicais reflete também minha caminhada pelo mundo. Afinal, toda vida tem sua trilha sonora... Nota do Editor Leia também "O Rei Roberto Carlos e a Ditadura". Gian Danton |
|
|