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Terça-feira, 8/12/2009 O silêncio de nosso tempo Guilherme Diniz Penso eu que, musicalmente, nossa época seja marcada por profundo vazio estético. Se por um lado a tecnologia foi capaz de nos proporcionar fácil acesso aos mais variados estilos e compositores, nem por isso a música determina ou influi decisivamente no modo como nós, ouvintes e consumidores, pensamos o mundo; ou seja, antes que ela ocupe lugar de destaque em nossas vidas, pouco ou quase nada sabemos identificar na nossa visão de mundo o que por ela se deixou influenciar. Em vez dela cumprir papel de preponderância nesse processo de formação e entendimento, parece que a música apenas preenche espaços vazios criados artificialmente por nossa inaptidão de entender o universo do qual fazemos parte. E essa contradição não se resume apenas à composição musical como manifestação específica da arte enquanto gênero, mas arte considerada em si mesma, como realização da vida humana. Essa crise, antes de se projetar como manifestação artística, existe como reflexo da perda da identidade do homem como construção social. No fantástico livro O Discurso dos Sons, o musicólogo alemão Nikolaus Harnoncourt procura traçar as raízes dessa metodologia, onde toda dimensão musical, elaborada necessariamente para refletir valores, ideias, idiossincrasias e contradições de um momento histórico, se vê transformada em mera peça ornamental, uma simples mercadoria. Mas como dito, essa contradição não existe apenas enquanto fenômeno musical. Na pintura, nas artes plásticas em geral, por exemplo, ocorre algo semelhante. Em vez de procurarmos a arte como condicionamento histórico, reino onde essas contradições do mundo real são aclaradas e potencializadas, procuramos nos refugiar em obras artísticas onde esse poder de síntese já se encontra diluído. E por uma razão muito simples: como as nossas condições históricas daquelas se diferem, fica fácil assimilá-las, pois que em nada nos perturba. E esse descompasso propõe, ao que parece, servir à perpetuação de um estilo artístico moderno de caráter conservador, na medida em que ele tenta resgatar e se influenciar pelas obras antigas. Contudo, se aquelas são belas na medida em que hoje não nos incomoda e não nos empurra a maiores questionamentos, a criação moderna, ao pretender unicamente o belo, nega justamente a função de uma obra de arte: abarcar, de forma aprimorada, aquilo que nos determina como frutos de certas predisposições sociais, econômicas e materiais, enfim, um modo de produção. Para Nikolaus Harnoncourt, "depois que a música deixou de ser o centro de nossa vida, tudo mudou de figura; como ornamento, ela tem que ser antes de tudo bela. Não deve, de forma alguma, perturbar ou assustar". Porém, como ele mesmo ressalta, isso é definitivamente impossível. Como ela se projeta como reflexo de nossa vida espiritual, quer dizer, do momento presente, essa confrontação é inevitável. Em sentido diverso, essa questão parece nos remeter a outra celeuma mais antiga, a de estabelecer qual seria a arte mais verdadeira ou autêntica. Nesse campo, duas posições logo se formaram. De um lado, aqueles que pretendiam uma arte pura, que conhecemos sob o lema parnasiano de "arte pela arte". Aqui ela se basta enquanto tal, um objeto a aprimorar um fim em si mesmo, configurado a não querer ― nem dever ― um objetivo que não aquele que vise sua própria perfeição. Do outro, uns que pretendiam explicar as relações estéticas como julgamentos de manifestações da vida, para utilizarmos aqui uma conhecida expressão do crítico literário russo Tchernychevsky. O fato é que Plekanov ― no seu livro A Arte e a Vida Social ― tinha razão ao escrever que "a tendência à arte pela arte aparece onde existe um desacordo entre os artistas e o meio social que os cerca". O seu exemplo, voltado especificadamente para a literatura, pode muito bem ser estendido para o campo musical. A prova disso pode ser encontrada quando observamos a forma com que atualmente a música é executada, onde as composições são transportadas para o presente ou são executadas como se estivessem sob olhar daqueles que a conceberam. A primeira concepção, como ressalta Harnoncourt, "é mais natural e comum às épocas em que há uma música contemporânea realmente viva". Não sem razão, é a opção escolhida pelos grandes musicistas e intérpretes. O que importa aí é reconhecer que a assimilação dessa música, ao progredir no tempo, faz com que a forma de compreendê-la varie naturalmente conforme ulteriores composições tomem posições mais acertadas do que ela em relação a determinado momento histórico, fazendo com que aquela antiga composição rapidamente não mais corresponda a outra coisa que não uma amostra das forças que existiam no passado. Assim, se crítica presente nesse trabalho permanece válida naquilo que lhe é essencial, sua substância, interpretá-la de acordo com o tempo de execução pode resgatar esse aspecto sem que com isso ela seja descaracterizada enquanto tal. Isso, contudo, não retira o valor de uma composição. Mozart, Wagner e Beethoven, por exemplo, não deixam de ser os grandes compositores que são porque não podemos compreender suas músicas da forma como o tempo deles a compreendia. Esse tema está além dessa discussão; a questão é saber em que medida a arte, nesse caso a música, influi decisivamente em nossas vidas, e por que isso está a deixar de acontecer. De modo contrário, uma forma mais moderna de entender a música foi estabelecida, que é a de recriá-la conforme o tempo de sua concepção. Diversamente da outra interpretação, esta demonstra claramente a inexistência de uma música moderna. Faz ver, a olhos vistos, a ausência de uma identidade musical própria e autêntica. O problema é saber, então, a quem interessa esse afastamento antinatural do homem em relação à música, quer dizer, do homem com sua própria historicidade e capacidade de compreender e transformar o mundo ― cui bono? Afinal, se Nietzsche acertou ao dizer que a vida só se justifica enquanto fenômeno estético, uma vida onde ela se encontra ausente não se justifica de forma alguma. Nota do Editor Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado em seu blog, O Rinoceronte Voador. Guilherme Diniz |
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