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Segunda-feira, 14/12/2009 Anticristo: sexo como culpa Wellington Machado Sexo e culpa. Ou culpa pelo sexo? O filme Anticristo, de Lars Von Trier, tem esses dois ingredientes como linha mestra. Classificá-lo como "chocante", "exagerado", "apelativo", como vêm fazendo os críticos, é analisar o filme de forma reducionista, ignorando a riqueza de suas intricadas relações, enigmas e símbolos. Enquanto faz amor de forma intensa, um casal ignora os perigos da autonomia do filho, que consegue descer do berço, abrir a janela e se jogar do alto de um prédio ― em uma cena antológica, diga-se de passagem. Com a morte da criança, a mãe entra em estado de luto profundo, tendendo à irreversibilidade e beirando o suicídio. O marido, terapeuta, propõe um tratamento - na verdade um jogo ― para tirá-la do abismo. A proposta do esposo é trabalhar com algo que a remetesse ao "medo", algo que amedrontasse a esposa (uma lembrança, objeto, lugar etc.). Ela, então, sugere se isolar com o marido em uma casa no meio de uma floresta, onde estivera recentemente com o filho. De forma crescente, o terror começa a tomar conta do casal. Vários acontecimentos envolvendo elementos simbólicos atormentam a vida dos dois. Contrapondo ao jogo proposto pelo marido, a esposa resgata, no sótão da casa, um material de estudo sobre o que se teria denominado "feminicídio" ― inclusive com cadernos, livros e recortes de jornais, contendo agressões e mutilações a mulheres. Somados a isso, há vários símbolos enigmáticos: um animal aparece frequentemente com um filhote recém-nascido, ainda preso ao útero, se arrastando pelo chão (a mãe que não abandona o filho?); um corvo é apedrejado furiosamente pelo marido, mas nunca morre; raízes se entrelaçam aos corpos do casal, enquanto fazem sexo ao pé de uma árvore gigantesca. O grande mérito de Lars Von Trier é trabalhar com esses ingredientes de forma quase onírica. Os símbolos estão sempre voltando, são recorrentes, como se fossem um aviso ― a constância dos símbolos nos faz lembrar os filmes de David Lynch. Por vários momentos o espectador tem a sensação de que aquela imersão sufocante na floresta vai terminar em um corte de cena, no qual o casal pula ofegante da cama, voltando à "segurança urbana", saindo do "flashback". Mas a floresta é real, e é chamada de "satanás" (anticristo?). O tratamento proposto pelo marido não surte efeito. A esposa, então, alia-se à floresta, incorporando-a de forma selvagem para se vingar do marido (e seu ineficiente método "anti-luto"). Animais, ventos, plantas e árvores se unem a ela para eliminar "o mal". O terror de Lars Von Trier tem nuances poéticas devido à maneira como é tratado; pela sua opção estética. O diretor certamente abandonou o "Dogma 95" ― movimento que o projetou nos anos 90, quando realizou filmes de baixo orçamento, mas com extrema inventividade. Sua experiência com efeitos especiais em Anticristo é deslumbrante. As cenas inicial e final são afins, carregam um tom azulado de rara beleza, ao som de Lascia Ch'io Pianga, ópera de Haendel. As imagens da floresta são onduladas e estonteantes, dando o tom do terror para quem se arrisca a entrar na mata fechada. A ausência de luz (à la Tarkowski, a quem o filme é dedicado), mesmo durante o dia, conduz o espectador a uma noite interminável. E há também uma pitada trash, nas cenas de mutilações e agressões físicas. A incursão de Lars Von Trier pelo suspense o reconduz aos trilhos da originalidade dos seus primeiros filmes, e o redime do fraco O Grande Chefe (2006). Em Os Idiotas (1998), o diretor trata de forma pitoresca e absurda da banalização social. Em Dogville (2003) e Manderlay (2005), a crueldade humana ganha uma roupagem teatral, cuja força está nos diálogos. Em termos de proximidade, se fizermos algumas concessões, Anticristo se aproxima mais do Dançando no escuro (2000), pela dureza impiedosa das situações vividas pelas mulheres nos dois filmes. Se neste, o mote é uma sociedade aniquiladora, que rouba e explora uma inocente, transformando-a em culpada, em Anticristo o foco gira em torno da sexualidade, da perda irrecuperável, da vingança. O filme Anticristo é inquietante não por aquilo que choca, mas pelos seus momentos herméticos e perturbadores. Os enigmas não são entregues gratuitamente. Os símbolos recorrentes nos jogam num labirinto de difícil solução. Ninguém sai incólume do cinema. A incursão do espectador naquela floresta é ludibriante e leva-o a pensar por dias nas possibilidades aventadas ― ou deixadas em aberto. Muitas insinuações ficarão sem um desfecho (tão solicitado por alguns críticos). O cinema (como arte) fascina pelas suas desmedidas, pela criatividade, pela busca de soluções estéticas incomuns em meio a tudo o que já foi produzido. Achar uma "brecha original" é tarefa para diretores ousados como Lars Von Trier. De que vale um final "resolvido" depois de uma caminhada como a de Anticristo? Nota do Editor Texto gentilmente cedido pelo autor. Wellington Machado de Carvalho mantém o blog Esquinas Lúdicas, onde o texto acima foi originalmente publicado. Leia também: "Dogville e a poesia". Wellington Machado |
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