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Sexta-feira, 8/1/2010
Lendo no Kindle
Julio Daio Borges


Para Claudio Baran, Diogo Salles, Eduardo Carvalho, Eduardo Fleury, Fabio Silvestre Cardoso, Luis Eduardo Matta, Miguel Cavalcanti, Leonardo Kuba, Ram Rajagopal, Rafael Fernandes e Rafael Rodrigues

* Como sabem os que me leem, sou o que nos Estados Unidos se chama de "evangelista" do Kindle desde o princípio. Escrevi um dos primeiros textos sobre o leitor de e-books da Amazon, na revista GV-executivo (Janeiro/2008), e repercuti a partir de então seus desdobramentos aqui no Digestivo (1, 2, 3 e 4). Falei tanto no Kindle, e fiz tanta propaganda dele, que acabei ganhando um de presente, neste final de ano, dos meus amigos acima. Portanto, antes de mais nada, meus agradecimentos a eles, mais uma vez. Sei que este parágrafo inicial pode definir se serei um analista isento do Kindle ou não, mas ― mesmo sabendo que isto pode custar a sua leitura ― tenho de admitir que foi o "brinquedo" que mais gostei de ganhar em muito anos. Talvez desde o iPod em 2005 (cujas minhas primeiras impressões ainda estão no ar).

* Aproveitando o "gancho" do iPod, eu diria que, em termos de gadget, o Kindle é uma evolução. Tudo bem, ele perde em matéria de design e de "usabilidade", mas não requer computador. A configuração dele é imediata se você possui uma conta na Amazon (já comprou, porventura, algum livro lá). O meu demorou algumas horas para reconhecer a "rede" do Brasil (o wireless não pegou "de primeira"), mas, uma vez que isso aconteceu, eu já pude navegar na Kindle Store e começar a baixar samples (os primeiros capítulos) dos livros que me interessavam.

* Para quem gosta de ler ― e, neste momento, para quem lê em inglês ― a loja on-line do Kindle é como uma livraria praticamente infinita ao seu alcance. No primeiro momento, baixei, para testar, indicações de amigos. Você digita o nome de um autor ou de um livro, no campo de busca, e o Kindle retorna os resultados. Você seleciona o livro que te interessa e: ou compra; ou tem a opção de "baixar" um trecho (para ler e decidir melhor). Obviamente, baixei dezenas de samples nas primeiras semanas. Meu criado-mudo, que sempre esteve abarrotado de volumes, de repente poderia ficar mais livre. Lembro, especialmente, de uma noite em que baixei Aristóteles, e de uma manhã, na piscina, em que baixei, e reli, a Apologia de Sócrates, de Platão.

* Naturalmente, não encontrei quase nada em português. Com exceção de uma ou outra obra de Machado de Assis ― e de todos os livros do Paulo Coelho ―, digitei vários autores "clássicos" brasileiros e nada encontrei deles. Imagino que o desejo das editoras nacionais de obter um melhor acordo com a Amazon ― partindo para uma negociação "em bloco" ― esteja atrasando a chegada dos nossos escritores à Kindle Store. Em geral, é mais fácil encontrar os "clássicos" das principais línguas, porque, historicamente, existem muitas edições deles: além de Platão e Aristóteles, encontrei Proust, Nietzsche, Tolstói, Dostoiévski, Schopenhauer, Hume, até Adam Smith, Bertrand Russell, F. Scott Fitzgerald e mesmo Peter Drucker.

* Por outro lado, encontrei muitos autores contemporâneos que têm uma ligação mais forte com a internet e que estão mais sintonizados com a tecnologia (especialmente em língua inglesa), como: Seth Godin, Malcolm Gladwell, Ray Kurzweil, Alain de Botton, Scott Berkun, David Allen, Lawrence Lessig, Kevin Kelly, Steven Pinker, Nicholas Carr, Yochai Benkler e David Weinberger. Imagino que todos os blogueiros, "jornalistas de tecnologia" ou simplesmente autores de internet que publicarem livros, a partir de agora, disponibilizarão uma versão eletrônica na Kindle Store.


* Os preços variam, mas, em geral, os livros são bem mais baratos que a versão impressa. Os clássicos, que eu listei acima, têm suas obras disponibilizadas a preços quase simbólicos, como US$ 2.99 (até em versões de editoras mais tradicionais, como a Penguin). Já os livros novos (dos últimos anos), custam pouco mais de US$ 10, porque fazem uso do fator "novidade", enquanto ainda jogam com o fator "escassez" (porque, nos EUA, são normalmente comparados à versão "capa dura"). Existe, ainda, o que eu chamaria de "classe média": os autores contemporâneos que não são clássicos mas que também não têm familiaridade com tecnologia (aqueles que demoraram a ter sites ou blogs, por exemplo). Como a maioria dos brasileiros: ou não estão na Kindle Store ou estão nela parcialmente (com algumas obras apenas).

* Tudo bem que eu ganhei o meu Kindle, mas, mesmo assim, fiz uma conta, para convencer você a comprar o seu. Eu costumava encomendar livros, em inglês, na Amazon. Se você pensar que cada livro em papel custa, no mínimo, US$ 20, e que você vai economizar, pelo menos, US$ 10 em cada versão eletrônica, você "amortizará" o gasto com seu Kindle lá pela terceira dezena de livros (se comprou ele nos Estados Unidos) ou lá pela sexta (se comprou, com impostos, no Brasil). O certo é que, entre 50 e 100 livros (no máximo), o Kindle torna a aquisição de novos títulos mais econômica.

* O primeiro livro que eu comprei foi o What Would Google Do?, de Jeff Jarvis, que cunhou aquela frase hoje famosa na internet: "Do what you do best and link to the rest". Paguei pouco mais de US$ 10, porque o livro é do início de 2009, e li, com grande prazer, os primeiros capítulos, no Kindle. Aliás, este foi um dos quais eu baixei, inicialmente, uma "amostra" ― e sobre o qual o Kindle me perguntou se (para continuar lendo) eu estava disposto a comprar. Configurei, antes, meu cartão de crédito para aceitar pagamentos através de um único clique, no site da Amazon, e, pronto, em poucos segundos o livro estava disponível no meu Kindle.


* Uma vez que você "baixou" um livro ou uma "amostra" dele, não precisa da rede wireless para nada. Pode, inclusive, pedir para "desconectar". O livro "abre" quando você o seleciona numa lista ― do que está armazenado no seu Kindle ―, e a navegação pela capa, ou pelas imagens gráficas, é similar à de um PDF. Já a parte do texto propriamente dito, você pode controlar melhor, escolhendo o tamanho da letra (algo que vai influir na paginação, como num documento em Word). Portanto, o número de páginas, no Kindle, varia. É muito fácil acessar, também, o índice, e pular para algum capítulo específico. (O Kindle sempre "para" na última página que você abriu.)

* Como eu gosto de marcar trechos em livros de papel com post-its, aprendi a marcar, também, no Kindle. Você simplesmente aperta o cursor antes da palavra em que deseja que o Kindle comece a sublinhar e vai se movimentando para a direita, ou para baixo, até o final do trecho, apertando o cursor mais uma vez. Pronto, está "marcado" (e esse trecho entra, automaticamente, na sua lista de "marcações" daquele livro). O dicionário, que vem configurado para o inglês, também funciona automaticamente: bastando posicionar o cursor antes da palavra que se quer consultar; o significado aparece na parte inferior da tela.

* A tela não cansa a vista e nem brilha (você precisa de iluminação, se quiser ler à noite). O Kindle é leve e você pode segurá-lo com uma mão só, enquanto lê. A bateria dura dias, a ponto de eu deixar o meu em "stand by" quase o tempo todo ― porque, volta e meia, me ocorre algum autor ou livro que desejo pesquisar. (O Kindle fica ao meu lado, no criado-mudo; ou perto do meu teclado, aqui no escritório.) Esse hábito me lembra a nossa mania de colecionar "favoritos" no browser (ou no del.icio.us). Acontece que, com o Kindle, você "coleciona" samples de livros ― que pode ler, ou não, no futuro. Sabe aqueles livros que você deixava na sua wishlist? Então: agora pode transferir uma boa parte deles para o Kindle.

* A tentação, como no caso do iPod, é querer transferir uma biblioteca inteira para o Kindle. A vantagem de ter seus livros preferidos sempre à mão é um conforto que compensa a "perda" em matéria de diagramação e demais artes gráficas. Pois o Kindle, evidentemente, se aproxima mais de uma "tela" do que de um livro de papel, com todas as questões de gramatura, cor, escolha de fontes, disposição de títulos, ilustrações, imagens encartadas, até peso, formato e mesmo cheiro. O Kindle mostra todos os livros, inicialmente, com a mesma letra, do mesmo tamanho, não tem cores, não permite diagramação (pré-definida), não prioriza ilustrações ou imagens, mas, sim, o texto em si.

* O Kindle tem me lembrando, bastante, a internet do início, de dez ou mais anos. Suas páginas são como as primeiras páginas da Web: monocromáticas, apenas com indicações de links, uma única fonte (tipo de letra), poucos subtítulos e mesmo títulos para navegar. A Kindle Store, em muitas de suas "estantes", parece "desabitada" ainda. Há aqueles títulos ― como na "primeira Web" havia aquelas páginas ― das quais você desconfia. Às vezes, publishers que você nunca viu... Versões não autorizadas? A Kindle Store é uma fonte 100% confiável de informação? Aliás, existe o acesso à Wikipedia e algumas possibilidades incipientes de navegação (essas fora da América Latina).

* Transferi alguns poucos PDFs via cabo USB (do próprio Kindle), mas não gostei do resultado. Parece navegação de PDF mesmo (em tela de computador): não dá para mudar o tamanho da letra, por exemplo. Talvez a solução esteja em pedir para a Amazon "converter" meus PDFs para o formato, padrão, do Kindle (mas eu ainda não estou convencido a "pagar" uma taxa extra por isso). Também não assinei nenhum periódico ou site ou blog. Eu gostaria de assinar a Economist ou a New Yorker, mas ambas não estão disponíveis para a América Latina. Claro que não vou assinar nenhum jornal ou revista do Brasil. Blogs brasileiros, também por uma restrição territorial, ainda não participam do Kindle. Como eu acesso diariamente a internet, não teria porque "assinar" uma coisa que posso encontrar na Web...

* Se você ainda não cansou de me ler, arrisco, para encerrar, um pouco de futurologia. O Kindle está num impasse, no Brasil, mas, de certa forma, já "pegou" nos Estados Unidos, quando, uma vez que a versão eletrônica está disponível, mais de 35% optam por esse formato na Amazon. Confesso que li o contrato da Amazon, para os publishers, e acho muito difícil uma editora brasileira, de livros em papel, assinar. Para começar que a Amazon fica com 65% do preço de capa (que é mais do que a mais "cara" livraria do Brasil "cobra" dos editores daqui). Segundo que a Amazon define a política de preços e pode, inclusive, romper com esse mesmo contrato a qualquer instante. Ao mesmo tempo, as editoras brasileiras não podem ficar completamente de fora. Como resolver?

* Por outro lado, para autores independentes ― como decidiu ser Paulo Coelho ―, o Kindle se revela bastante convidativo. Pois a Amazon paga os mesmos 35% do preço de capa para os pequenos editores e autores independentes. Ou seja: mesmo que o livro eletrônico custe mais barato do que o livro de papel, nunca um autor independente pôde estar tão disponível (na maior livraria do mundo) e recebendo, em direitos autorais, algumas vezes mais. E o melhor: sem o custo inicial de investir em uma edição em papel, que pode não decolar (ficando encalhada e só gerando prejuízo).

* Quem me lê há um certo tempo, sabe do meu desejo, nem tão secreto, de editar livros. Mas confesso que, de uns tempos pra cá, não via mais sentido. Porque lançar autores inéditos é prejuízo na certa. Depois: republicar o que já está na internet, em papel, não é uma ideia com a qual eu esteja 100% confortável. E os livros em papel, francamente: será que vão durar muito mais que os jornais e as revistas (a ponto de justificar um novo business criado em cima disso)? Mas o Kindle me fez voltar a acalentar a ideia... Afinal, o custo de tentar é muito pequeno. Os livros eletrônicos combinam melhor com a filosofia do Digestivo. Quem sabe eu não abro uma editora no Kindle? Você toparia ser editado por mim? ;-)

Para ir além
Kindle Wireless Reading Device
(6" Display, Global Wireless, Latest Generation)

Julio Daio Borges
São Paulo, 8/1/2010

 

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