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Terça-feira, 12/1/2010
O Véu, de Luis Eduardo Matta
Fabio Silvestre Cardoso

Recentemente, causou grande comoção na mídia e nos círculos mais informados a visita ao Brasil do líder político iraniano Mahmoud Ahmadinejad. Como é sabido, o líder iraniano é autor de inúmeras declarações polêmicas que, entre outras coisas, questionam a existência do Holocausto, bem como sugerem a destruição do Estado de Israel. Por esse motivo, depois de George W. Bush, Ahmadinejad é o que mais se aproxima de inimigo público nº 1 do mundo. No Brasil, embora em menor escala, sua visita provocou alguma agitação junto à opinião pública. E, de fato, já faz algum tempo que os intelectuais, jornalistas e até mesmo outras entidades internacionais anseiam pela troca de regime político teocrata no Irã. Após 30 anos da Revolução Iraniana, as fissuras no tecido social são visíveis, mesmo para quem não presta tanta atenção no tabuleiro da política e das relações internacionais correlatas ao imbróglio do Oriente Médio. À sua maneira, Luis Eduardo Matta, com seu novo thriller, O Véu (Primavera Editorial, 2009, 560 págs.), atenta para essas e outras questões na obra que chegou há pouco às livrarias.

O Véu é o sétimo livro de Luis Eduardo Matta. E se em obras anteriores (Conexão Beirute Teerhan; Ira Implacável) o debate estava centrado no âmbito do terrorismo e da intriga internacional, desta vez o autor investe em uma abordagem que foge da leitura mais fria dessa discussão e envolve o leitor em torno de uma história que lida com outro ambiente, mais sofisticado e não menos relacionado às subjetividades: o mundo da arte. Aqui, novamente, o autor desenvolve uma espécie de assinatura, já que, em 120 Horas (Planeta, 2005), a narrativa tinha como pano de fundo o mundo da alta costura.

Dessa maneira, entre as relações internacionais e o universo das artes plásticas, em O Véu os personagens são tragados para uma espiral de acontecimentos que não dão trégua ao leitor. Para quem espera de um thriller apenas uma fórmula pronta no que tange à sua estrutura formal, há de se surpreender tanto com o desenrolar da narrativa, quanto com a maneira que o autor propõe um novo olhar para uma das tensões mais quentes dentro do embate intelectual na sociedade contemporânea. Assim, para além do relato de suspense sobre o terrorismo internacional, existe, em paralelo, a discussão acerca de como o intelectual vê a contemporaneidade e de como pode ser nocivo o entendimento literal de certas propostas associadas ao ideal da razão.

Enredo, texto e tecido
Ao livro, portanto: dividido em três partes, O Véu traz a história de Lourenço Monte Mor, jovem e promissor artista, que, com sensibilidade à flor da pele, é capaz de se deixar levar por uma paixão proibida. Absorto, Lourenço se dedica ainda mais ao trabalho e elabora o quadro que dá o título ao livro, uma peça aterradora que mostra uma deslumbrante mulher com o corpo coberto apenas por um véu, provocando a ira dos religiosos mais radicais, atiçando a sanha de grupos terroristas que se sentiram perjurados pela obra, além de causar grande repercussão da classe artística. Quem é a mulher representada no quadro? Por que a obra arrastará atrás de si não somente os personagens diretamente relacionados à trama ― como é o caso de Lourenço Monte Mor, Anibal Monte Mor e Araci Quintanilha ― mas também outras figuras misteriosas, que aparentemente não estão ligadas à obra ― tais como Mohsen Khajepour, Jaffar Jalaipour e Mitra Rahmani, cujas personalidades são tão complexas quanto distintas? Descortinado, "O Veu", de Lourenço Monte Mor, desencadeia toda uma série de acontecimentos que se desdobram nos demais capítulos do livro.

Os linguistas mais afeitos à origem das palavras gostam sempre de lembrar que os termos "tecido" e "texto" remetem à mesma estrutura. Não por acaso, sustentam os teóricos, assim como um bom tecido, um bom texto se fundamenta, essencialmente, pela sua articulação, coerência e coesão, que dependem, no caso de um thriller, da capacidade criativa do autor. Em O Véu, a costura do texto se baseia não apenas no aspecto verossímil das cenas, dos ambientes e da temática ― o mundo da arte relacionado ao terrorismo internacional. Antes, a obra consegue vida própria no âmbito da ficção porque constrói um arcabouço narrativo que sustenta a longo prazo as inúmeras reviravoltas da história. Dito de outra maneira, muito embora seja um romance de ficção, há momentos em que o leitor acompanha as passagens como se aqueles acontecimentos fossem verdadeiros. Todavia, diferentemente de uma reportagem jornalística, a história consegue se estabelecer no plano da ficção graças ao seu andamento que não perde o ritmo.

Exemplo disso se dá em uma das principais passagens da obra, quando o autor estabelece uma ponte com as manifestações do Irã logo após as eleições naquele país em meados de 2009. É o momento em que Mitra Rahmani, uma intelectual que desafia o senso comum do ocidente a respeito do entendimento que as próprias iranianas têm acerca daquele regime, procura incessantemente por seu marido, Jaffar Jalaipour, que, naquele momento, havia sido acusado de ser um traidor do governo. Toda essa ambientação é pertinente, pois consegue mostrar que nem todos os iranianos são alienados ou fanáticos (como destaca certa tendência do noticiário) que não se importam com o que acontece por ali. Nesse aspecto, o livro se destaca por apresentar um cenário sociopolítico diferente do que se costuma imaginar fora de lá.

Nesse sentido, para além dos elementos de ação que compõem a narrativa, a obra também propõe um debate acerca das razões que podem levar ao terror. Aqui, ao contrário do que se possa imaginar, o autor não tenta justificar as motivações de uma facção terrorista, mas se estabelece uma hipótese ao apresentar as teses extremadas que se travestem de conceitos intelectualizados. E o leitor descobre que a ideia de banalidade do mal não se justifica apenas com os quadros mais brutos, mas, também, nas camadas mais sofisticadas, que, muitas vezes, trazem consigo o semblante de serenidade, temperança e moderação. Demasiadamente humano, o comportamento de algumas das cabeças mais brilhantes da sociedade também servem ao mal, o que é uma lástima, mas é a um só tempo verossímil e verdadeiro.

A política do thriller
Como escritor, no entanto, Luis Eduardo Matta não toma partido desta ou daquela causa. Isto é, seu livro não funciona como peça de proselitismo político, ideológico ou religioso de quem quer que seja. De um lado, porque, antes de qualquer coisa, trata-se de uma obra de ficção, que, por acaso, toma emprestado da realidade alguns elementos factuais. Por outro, a narrativa traz consigo o contraponto desta visão extremada na figura de diversos personagens, como a já citada Mitra Rahmani e Araci Quintanilha. Não se trata, obviamente, de modelos de heroínas da literatura, mas encarnam ideais mais próximos à pluralidade e à convivência pacífica com a diferença, com o outro. Há que se notar, a propósito, que, tal como nos livros anteriores, Luis Eduardo Matta concede às mulheres as personagens mais ricas. De sua parte, os personagens masculinos, quase de forma previsível, tendem mais ao vício do que à virtude, o que não necessariamente chega a surpreender no que se refere ao comportamento.

Ainda assim, chama a atenção a força existente no antagonista, cuja identidade fica encoberta por boa parte da história. O que salta aos olhos, mais até do que as perversidades, é a capacidade de o ser humano racionalizar o mal, tornando-o justificável com base em uma crença religiosa e, o que é mais perigoso, num delírio da razão. É, por que não?, um alerta para os tempos que seguem, quando a ordem e o discurso atentam, em uníssono e não sem motivo, para o problema das religiões. Todavia, há de se lembrar que, também a ideologia, é capaz de manifestar o que os instintos mais primitivos; afinal, quantos não foram os mortos, para citar o século XX, devido à causa da política? Em O Véu, essa questão, ainda que de forma subjacente, é trazida à tona no ápice do livro.

Por todas essas questões, o novo livro de Luis Eduardo Matta, lançado pela Primavera Editorial, não apenas cumpre o que promete ao propiciar ao público uma leitura saborosa, mas, também, propõe uma reflexão acerca do vasto mundo contemporâneo e de seus pensamentos, muitas vezes, imperfeitos.

Para ir além





Fabio Silvestre Cardoso
São Paulo, 12/1/2010

 

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