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Sexta-feira, 15/1/2010
Livros, revistas, jornais e displays eletrônicos
Ana Elisa Ribeiro

Não sei quando foi que aprendi, nem como, mas alguém deve ter me ensinado a folhear um livro. Em geral, essas coisas são aprendidas de duas maneiras: pela experiência direta ou pela experiência mediada. Em outras palavras: ou a gente pega e fuça; ou alguém mostra para a gente como é que faz.

Há mediadores mais pacientes, daqueles que são amigáveis, que pegam na mão, que dão orientações precisas, que esperam que a gente aprenda no nosso ritmo e até os que dão bombom no final, para recompensar. Há mediadores mais ansiosos, que xingam, que enunciam frases rudes, mas que deixam a gente aprender mais ou menos em paz. Há mediadores que perdem a paciência e começam a fazer por nós, correndo na frente para despachar logo o "aluno" impertinente. Nesse caso, é comum que a gente não aprenda nada. Isso exige o esforço de pedir um repeteco, de ficar sofregamente observando, por cima das mãos e dos ombros do "professor", para ver bem o que ele está fazendo ou mesmo de, discretamente, pedir ajuda a outra pessoa. Há ainda a possibilidade de que esse último instrutor (sem discussões filosóficas sobre esses termos, ok? Aqui, não!) faça tudo lentamente, e a gente acaba aprendendo tudo. Acho que foi assim que aprendi a operar videocassetes e videogames (lembrando que sou da geração Atari, cujo joystick só tinha um pauzinho e um botão vermelho). Há, ainda, o mediador que xinga todas as nossas gerações passadas, chama a gente de burro e outros bichos, além de nos deixar deprimidos. Isso acontece.

Dada a relativa oferta do artefato nos meus arredores, provavelmente aprendi a operar livros por experiência direta. Peguei, descobri que tinha "cabeça pra cima" e "cabeça pra baixo" (depois que aprendi que as letras do alfabeto têm isso), percebi que o negócio era pra ser aberto com movimento para a esquerda, vi folhas empilhadinhas, presas por um lado, vi números de página etc. Há um vídeo no YouTube bem legal sobre isso (uma brincadeira, mas com um fundão danado de verdade) e alguns autores importantes trabalham nessa linha, como o badalado historiador francês Roger Chartier.



Jornais, estes sim, aprendi pela experiência mediada. Meu pai, sem muito dizer, lia, religiosamente, o jornal na hora do almoço (ou no final da tarde ― houve um tempo em que a notícia continuava fresca por mais tempo). Eu e meus irmãos, na presença daquela cena diária, na falta do que conversar (e até para ter o que conversar) ou para acompanhar a mastigação do arroz com feijão, íamos pegando as sobras do jornal do meu pai. Enquanto ele dava uma superpanorâmica pelo periódico inteiro, meu irmão surrupiava, por baixo da página aberta, o caderno de esportes ou o de veículos, enquanto eu catava o "Caderno 2", cujo tema era cultura (na verdade, notícias de entretenimento, alguma rasa crítica de qualquer coisa e a programação da TV). Assim aprendemos a procurar, a escanear, a preferir, a ser fiéis a algum colunista (lembro sempre do sensacionalmente inteligente Eduardo Almeida Reis...), a folhear, a comentar.

Revistas também foram mediadas. Não cheguei a ganhar assinaturas da Turma da Mônica. Aliás, os quadrinhos são apenas um dos gêneros de texto que vamos aprendendo na lida com práticas sociais de leitura/escrita. É preciso aprender a ler quadrinhos. Até mesmo em alguns livros de Português há lições (formais) de como interpretar quadrinhos, os códigos dos balões etc. Não é assim? Mas essa não foi uma mediação ou uma oferta muito forte na minha casa nem na minha escola. As revistas que pintavam no doce lar eram outras. Meu pai assinou a Veja por ininterruptos muitos anos. Foi com ela que aprendemos um tanto de outras práticas desse tipo de leitura mais fragmentária ou, como gostam alguns teóricos, "mosaiquica". A revista tem um mapa mais denso do que o jornal, um pouquinho mais aprofundado também. As páginas amarelas, a leitura de entrevistas, o contato com um projeto gráfico mais elaborado e "navegável", padrões, consistência etc. Isso foi aprendido na interação com a revista. Muito embora não tivéssemos aulas de "como operar revistas", a mediação silenciosa do pai (ou de quem mais praticar essa leitura) nos fez aprender a ler.

Há outros jeitos de ler textos. Há inúmeros outros displays de material verbal por aí. É só olhar ao redor. Até criança analfabeta sabe que há uns desenhos espalhados para todo lado que servem para ser lidos.

O computador como display já é uma outra história. Ou não? De novo, minha primeira experiência foi mediada. Uma tia, um ex-namorado, um amigo. Todos envolvidos, mesmo meio sem saber, na minha aprendizagem das práticas de ler/escrever na máquina que se ligava na tomada. Diante daquela experiência intensa, fui descobrindo, pela experiência direta, outras coisas para fazer com o computador, ainda relacionadas ao mundo da escrita. Não tive aulas, não fui à escola aprender informática, nada disso. Eu me apropriei dessa prática de um jeito híbrido (entre a mediação e a objetividade), assim como fazemos (todos nós) com tudo o que aprendemos por aí. Já pensou se dependêssemos de escola para aprender as coisas todas que existem? Ou o currículo seria absurdamente extenso ou nós seríamos limitadíssimos (mais ainda) ao que alguém nos disse. O oferta de informação e conhecimento é mais intensa hoje, mas não é, graças a Deus, exclusividade de nossa época.

Ler no celular, ler no Kindle, ler no notebook... são práticas mais recentes, isso é certo. E como é que a gente aprende a fazer isso? Precisamos mesmo de aulas formais de como ler no celular? É preciso lembrar, no entanto, que cada objeto desses tem suas "affordances" (palavra meio sem tradução...), ou seja, você faz com o artefato o que ele propõe a você. Na verdade, a gente também propõe coisas a ele, às vezes algo que o projetista nem imaginou. Livros de papel fazem uma proposta específica ao leitor. Pegue, abra, folheie, busque da maneira X, feche, não deixe dando sopa em locais úmidos, nem no sol excessivo etc. O Kindle faz outra proposta, mais parecida com a dos displays de leitura que têm botões, tela, rolagem etc. E qual é o problema? Nenhum. Só que Kindle não é livro. Enquanto chamarmos uma coisa de outra coisa, teremos esse conflito engraçado de identidade. O leitor versátil deve ler textos em diversos displays. Não é bacana? Muito melhor do que se tivéssemos apenas um modo de ler e escrever. Por isso é que ser leitor é um jogo gostoso: a partida não acaba nunca, ou porque os displays se renovam ou porque nós podemos sempre aprender coisas novas (e não apenas no sentido operacional) em relação a essas práticas. E não digo isso no sentido evolutivo, como se uns modos fossem melhores do que os outros. Pensar isso é fundamental para se compreender a leitura e suas máquinas como um horizonte só, cheio de possibilidades.

Ana Elisa Ribeiro
Campos de Goytacazes, 15/1/2010

 

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