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Terça-feira, 19/1/2010 O filme do Lula e os dois lados da arquibancada Diogo Salles Lula, o filho do Brasil. Esse é o nome da polêmica do ano (que mal começou). Já é possível antecipar essa previsão, pois o filme invade não só o debate sobre a produção de cinema nacional (apimentado pela polêmica sobre as leis de incentivo), mas também o debate político. Com orçamento recorde, atmosfera novelesca e elenco global, a película busca mimetizar todos os arquétipos (e feitos) de 2 Filhos de Francisco, se desenhando como a mais controversa cinebiografia já feita por aqui. Feito para emocionar, feito para chorar e, principalmente, feito para vender. Para efeitos cênicos, a discussão sobre o filme é nula, pois não traz nenhuma inovação e não se vende como alta cultura. Sob esse ponto de vista, qualquer crítica fica oca ao analisá-lo sob os mais altos conceitos da sétima arte. Mas como o personagem principal é um presidente ainda em exercício do mandato (e que busca fazer o seu sucessor em ano eleitoral), não há como não analisá-lo sob o aspecto político. Pode-se argumentar que O filho do Brasil foi feito sem dinheiro público ― o que é verdade ―, mas expõe de maneira grosseira o jogo promíscuo das empresas privadas que patrocinaram o filme, interessadas em adular o governo, com as piores das intenções. O espectador não fica livre nem dos "merchans", como na constrangedora cena em que os personagens pedem uma determinada cerveja, enxertando um slogan que nem existia na época em que o filme se passa. Há de se ressaltar a ótima caracterização do ator que incorporou Lula no filme. Rui Ricardo Diaz reproduz os trejeitos e a voz sem cair na caricatura. E Glória Pires é bastante contida (e por isso mesmo, correta) na interpretação de Dona Lindú, mãe de Lula. Inicialmente idealizado como uma mistura de documentário com melodrama (vulgo "docudrama"), o diretor Fabio Barreto alterou a rota no meio do caminho e resolveu partir para a ficção, ora omitindo, ora "romanceando" fatos da vida do presidente, para efeitos dramáticos (e mercadológicos). No mais perigoso deles, o episódio em que os sindicalistas jogam o empresário do alto de uma escadaria da fábrica e este morre estatelado no chão, resultando numa histeria coletiva. No livro de Denise Paraná (que serviu de suporte para o filme), Lula "achou que estavam fazendo justiça", compactuando da atitude de seus companheiros. No filme, ele cai em prantos, horrorizado com toda aquela violência ― forjando um Lula humanista e, por isso mesmo, desumanizando-o. Deixando claro que, no filme, a intenção é somente esculpir um mito, tudo o que Lula (supostamente) teria de ruim é empurrado (metaforicamente) para o seu pai, Aristides, interpretado por Milhem Cortaz. Como bônus, entre outras ironias, temos Fabio Barreto e seu pai, Barretão (o Assis Chateaubriand do cinema nacional), admitindo terem sido eleitores de Fernando Henrique Cardoso, incitando ainda mais a (falsa) polêmica entre o ex e o atual presidente e alavancando a promoção do filme. O ponto mais correto do filme (que se aproxima de um documentário) fica para a formação da figura política de Lula, remontando sua trajetória sindical. Para quem achava que o presidente já levantava as bandeiras de esquerda na luta contra a ditadura militar, vai se decepcionar, pois o Lula que aparece naquela época, além de já ser carismático, era também conciliador, extremamente pragmático e apolítico (sim, no sentido ideológico ― procurando ficar alheio às lutas políticas dos anos 60 e 70). Só depois de liderar as greves no sindicato em 1978 é que Lula ficou famoso no país inteiro, e, posteriormente, foi abraçado pela intelligentsia de esquerda, que viria a fundar o Partido dos Trabalhadores. No filme, temos um bom retrato da gênese do camaleão político que vemos nos dias de hoje, que gesticula com a mão esquerda e manipula com a direita. Os detratores acusaram o filme de ser eleitoreiro antes mesmo de ele chegar às telas. Ao que os defensores rebateram argumentando que ele não mostrava a trajetória política do presidente (acaba em 1980, pouco antes da fundação do PT). Ambos os lados têm razão... Em termos. Se o filme não mostra os feitos do governo, não pode ser tido como eleitoreiro, mas o desfecho épico, com imagens de Lula eleito em 2002, nos braços do povo, deixa uma mensagem subliminar de que aquela figura "romanceada" teria mantido todos os valores (que o filme acabara de ensinar) durante os oito anos de mandato. Imagine o que Dona Lindú pensaria se visse seu filho defendendo mensaleiros, abraçando Collor, mancomunando-se com Sarney e toda a alcateia do PMDB... Mas, como era de se esperar, o problema de O filho do Brasil foi muito além das salas de exibição e dos cadernos e sites de cultura. Quando se tem um líder popular no poder, as reações vão da mais profunda idolatria ao ódio mais rancoroso. De um lado, a classe média ressentida, que se recusa a aceitar o ex-torneiro mecânico no poder. Atacam Lula pelo fato dele não ter estudado e defendem políticos com respeitáveis títulos de doutores (mesmo que seus currículos acadêmicos sejam tão extensos quanto suas fichas criminais). O ódio chega a tal ponto que, se escorregarem numa casca de banana e caírem de bunda no chão, são capazes de colocar a culpa no Lula. Na impossibilidade de arrancá-lo as tripas e vê-lo empalado em praça pública, pegam carona em qualquer bobagem que o presidente fala (e olha que são muitas) para impichá-lo moralmente. Com o filme, encontraram mais uma via para tentar converter seus interlocutores ao antilulismo fanático e oportunista. Do outro lado, os pitbulls da esquerda militante. Empenham-se ― com todo o ódio ― na defesa cega e aguerrida de seu deus. Se já ficavam contrariados em ver uma simples charge no jornal, imagine o que acontece com alguém que resolver criticar o filme do "chefe". Qualquer crítica ou manifestação contrária pode (e deve) ser patrulhada. É aí que aparecem as muletas mais comuns do exército chapa-branca: "preconceito", "mídia", "elitista", "facista" (eles escrevem errado mesmo), "golpista", "direita"... Portanto, cuidado: se os pitbulls estiverem sem suas focinheiras, é bom que você já tenha tomado a sua dose da vacina contra a raiva... A política, da maneira como é vista no Brasil, mostra uma paupérrima gama de cores: ou é preto ou é branco. Não existem tons de cinza em nossa palheta. O compromisso partidário não permite ser a favor do Pro-Uni e, ao mesmo tempo, contra o aparelhamento estatal. É também proibido criticar a política de juros do Banco Central e, ao mesmo tempo, reconhecer os feitos do Bolsa Família. A discussão sobre as cotas raciais nas universidades, a política externa no caso Honduras e no caso Cesare Battisti... Tudo, absolutamente tudo no Brasil é discutido com uma cartilha ideológica ou partidária debaixo do braço. Nem o STF escapa. Muitos não se dão nem ao trabalho de refletir o que está escrito nessas cartilhas, apenas regurgitam tudo o que ali está, de maneira absolutamente acrítica. Aqui, ou se é radicalmente contra ou se é colericamente a favor. De modo personalista e apaixonado, deixamos de reconhecer erros e acertos, para defendermos as resoluções mais descabidas, tudo em nome de identificações meramente pessoais. Esse governo não é a soma de todos os medos, como muitos querem acreditar (as diferenças entre Lula e Hugo Chavez são abissais), mas também está muito longe de ser essa maravilha que os adeptos do discurso do "nunca antes nesse país" fazem parecer. Ambas as frentes (contra e a favor), infiltradas em blogs políticos pretensamente "independentes" e/ou "imparciais", levam a defesa de suas concepções políticas às últimas consequências. O achincalhamento, a difamação, a intolerância e a perseguição implacável de seus "adversários" mostram do que é feita a arte do extremismo político. Num momento em que se tem uma eleição presidencial à frente e que Lula cumpre o seu último ano de mandato, o filme traz à tona os piores sentimentos e preconceitos daqueles que encaram o debate político como uma pancadaria entre torcidas num jogo de futebol. Além de colocar a internet em estado de sítio, o filme retoca a já pesada maquiagem publicitária do presidente, visando a aprovação máxima, a popularidade inatingível, a unanimidade ― uma contradição para um país que se pretende democrático. No país das novelas, pode funcionar como enredo de horário nobre, mas ao romancear a trajetória de um líder político, insinua o culto à personalidade, remodelando-o para o consumo, como uma figura mítica, incorruptível e magnânima. Quem acompanha (mesmo que à distância) o noticiário de Brasília, vê um Lula muito diferente. Assim, O filho do Brasil conseguiu pecar no timing do lançamento, desconstruir um grande roteiro (que já estava escrito) e ainda jogar no lixo a chance de ser tanto rentável comercialmente, quanto elegante no trato com a coisa pública. Uma pena. Bom, fim de mais um clássico. As torcidas já se armam para mais uma guerra. O pau promete quebrar feio dessa vez... Diogo Salles |
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