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Quinta-feira, 21/1/2010 Uma vida para James Joyce Daniel Lopes Meu medo natural de adentrar as obras de James Joyce (1882-1941) surgiu em certo momento de 2001, quando li Um retrato do artista quando jovem e não entendi nada, e acabou em novembro de 2007, quando enfim consegui um exemplar daquela maravilha de livro de contos que é Dubliners. Me apaixonei particularmente pela história "Eveline", uma das menores do volume ― rica e acessível. Como passo seguinte, em agosto de 2008 juntei coragem e comprei um original de A portrait..., e agora, sim, fiquei encantado ― em parte porque já me encantara antes com a completíssima coletânea My oedipus complex and other stories, do também irlandês Frank O'Connor (1903-1966), e os contos deste que lidam com o período da infância guardam alguma semelhança com as aventuras de Stephen Dedalus em Portrait, principalmente na crítica à ortodoxia e à educação católicas. Aguardo agora para adquirir meu exemplar de Ulysses e, em seguida, o Finnegans wake (não, eu não acho que, com a idade e o inglês que tenho, aproveitarei todas as nuances deste romance de linguagem doidona ― sequer acho que perceberei todas as nuances ―, mas vale a pena uma primeira incursão sem grandes pretensões, vocês não acham? Ou será que alguém engoliu Finnegans wake de primeira?). James Joyce travou muitas guerras, antes, durante e depois da Grande Guerra ― da qual não participou e à qual dirigiu uma indiferença quase irresponsável. Os confrontos do escritor se deram com a Irlanda natal, com o catolicismo, com sua família, com sua esposa, com seus advogados/agentes literários, com a censura puritana da Europa e dos EUA, com seu corpo e com sua mente. Pois Edna O'Brien percorre com desenvoltura todos esses campos de batalha em James Joyce, uma das mais breves e célebres biografias de todos os tempos. São menos de 200 páginas em tom de conversa com o leitor, uma conversa rigorosa e inteligível. Depois de uma saída da Irlanda que mais se assemelhou a uma fuga, com a mulher Nora, o jovem Joyce iria se estabelecer em algumas cidades da Europa continental ― Trieste, Zurique, Paris. Deixou o país natal porque já não aguentava mais o catolicismo carola, o eterno clima de rivalidade com os protestantes, e também porque já não podia mais com as intempéries do pai e a docilidade dos irmãos e irmãs. No exílio voluntário, correspondia-se mais com a mãe e com o irmão Stanislaus, mas mesmo com estes dois sua relação era ambígua. Chegou a chamar Stanislaus para passar uma temporada em sua casa em Trieste, mas só para depois cair em profundo arrependimento. O tom de suas missivas para a mãe variava de um esnobismo e arrogância pueris a sinceras, embora contidas, mostras de carinho. O relacionamento com a esposa também era difícil e inconstante. Em um momento trocavam mensagens abertamente pornográficas, excitavam um ao outro e se entregavam a lascivos encontros que, mesmo na linguagem bem comportada de Edna, deixa a nós leitores com alguns pêlos em pé. Em outros dias, ele ameaçava deixá-la, e ela fazia o mesmo. Houve algumas separações, mas não duraram muito. Parece claro que Joyce não seria inteiramente Joyce sem sua Nora. E, bem, Joyce também não seria Joyce sem as suas muitas escapadas ― adorava tavernas e bordéis, que dizia serem os locais mais interessantes de qualquer cidade. Desse infinito passeio de Joyce de uma mulher a outra ― suas alunas, inclusive ―, alguns críticos concluíram que ele as desprezava. Isso não é verdade, diz Edna O'Brien. "Como grande artista, Joyce tinha ideias radicais e mutáveis sobre tudo. (...) Em sua primeira ficção, as mulheres eram criaturas sacrificiais modeladas nas que o cercavam, as mães e irmãs submissas aos homens a que serviam. (...) No mais estético Portrait of the artist, as mulheres são criaturas idealizadas, aves marinhas de saias erguidas, entrando mar adentro numa inocência infantil, mas assim que conheceu Nora Barnacle suas mulheres passaram a encarnar o etéreo e o sexual. Não mais vítimas, evoluíram para tentadoras e feiticeiras. (...) O credo de Molly [personagem de Ulysses] era: 'Primeiro vamos nos divertir um pouco'. Indiferente à política, expande-se sobre cada um e todos os aspectos da vida, invoca aventuras sexuais mesmo já tendo visitado o amante Blazes Boylan ('Não distingue poesia de um repolho') nesse mesmo dia, e fala do marido a mandriar pela cidade (...). Só a Esposa de Bath de Chaucer rivaliza com Molly em sua visão franca e desbragadamente irônica dos homens." Obviamente, romances com mulheres que se acham no direito de ter um amante ― mesmo quando, como é o caso aqui, isso não fere de morte o sagrado casamento, pelo contrário, conta com a complacência (e troco na mesma moeda) do marido Leopold ―, romances assim não eram muito populares entre as cortes que tinham o trabalho de autorizar ou não a circulação de livros, na Europa e no Novo Mundo. E a moralidade de uma obra, tal qual entendida pelos juízes puritanos, era quesito fundamental na aprovação ou reprovação de um livro. Assim, Joyce tem problemas para ter seu livro publicado mesmo aos pedaços, em revistas literárias. Isso desde Dubliners, que tem um conto ― "An encounter" ― com, segundo os censores, referências ao homossexualismo. O enredo é: um senhor encontra dois garotinhos em um parque, tem prazer ao espezinhá-los verbalmente e depois se afasta para fazer algo, hum..., esquisito? ― "Look what he's doing!", diz um dos meninos; o outro prefere não olhar, e limita-se a dizer, "In case he asks us for our names, let you be Murphy and I'll be Smith." O velhinho podia estar apenas fazendo xixi no lago ou atrás de uma árvore, mas haviam outras imagens povoando as cabeças dos bem educados juízes. O Ulysses de Molly e Leopold Bloom só pôde sair nos Estados Unidos vinte anos após escrito. No julgamento, a Sociedade para a Prevenção do Vício fez as vezes de promotoria. Ao final de um longo processo de libera/não libera, o juiz responsável concluiu que tratava-se de uma obra obscena, "mas não obscena por obscena", e o veto ao livro caiu junto com a Lei Seca ― "o que levou um dos aliados de Joyce a observar que mentes e garrafas haviam sido abertas ao mesmo tempo", escreve Edna. Esses constantes processos concorriam para deixar Joyce ainda mais próximo da loucura. E como em sua história de vida não há espaço para desgraça pouca, ele teve que lidar ainda com um problema de vista que praticamente o deixou cego. Ao escrever Finnegans wake, seu último romance, utilizava canetas de diversas cores e traçava letras maiores que o normal, para tornar possível os processos de releitura e correção. Na verdade, enquanto produzia esse livro repleto de firulas, subversões e invenções linguísticas ― que não seriam compreendidas por nove em cada dez críticos da época ―, é provável que o autor já tivesse atingido o estágio pleno da loucura. Gritava e gargalhava sozinho enquanto tecia suas frases diabólicas ― há uma personagem "Quaseplena, Sempreviva, a trazedora de Plurabilidades"; outro que trabalha num "esquiarcéu"; e um terceiro prega que "os delírios de Honah Jon abrigam fulgoraucloma". A barulheira não deixava a pobre Nora pegar no sono. Seus livros "imorais" decepcionaram inclusive à família em Dublin. E, apesar de tê-la abandonado, Joyce não se lixava para sua opinião (assim como, apesar de ter abandonado a provinciana Dublin, acabou por imortalizá-la em Ulysses). Porque, já dissemos, James Joyce era muita coisa e seu oposto ao mesmo tempo. "É um belo tipo de canalha", foi a opinião que teve de sua pessoa o pai, John, ao folhear um exemplar de Ulysses para ele enviado pelo próprio escritor. Mas a ambiguidade no trato com pessoas e lugares James parece ter herdado exatamente do pai, pois se este se fazia de difícil e durão, quando estava à beira da morte pediu a quem estava perto: "Diga a Jim que ele nasceu às seis horas da manhã". A morte do velho John Joyce na penúria, logo quando o filho pela primeira vez tinha alguma folga financeira, seria o último grande motivo de tormenta para James. Nota do Editor Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no Amálgama. Daniel Lopes |
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