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Sexta-feira, 23/11/2001
A TV é uma droga
Rafael Azevedo

Sílvio Santos vem aí...
Com o sucesso da “Casa dos Artistas”, começa o alvoroço dos “intelectuais” brasileiros, que já se debruçam sobre o fenômeno de audiência, dissecando-o e tecendo suas conclusões. E é engraçado constatar que o tom é sempre o mesmo: encaram o programa como um fruto da falta de educação e cultura de nosso povo. Eis que exatamente aí que se enganam; esquecem-se de que a autoria do programa não é brasileira, e sim holandesa, e que o programa foi sucesso absoluto de audiência em todos os países por onde foi transmitido, o que inclui os EUA, Europa, Argentina e tantos outros países mundo afora. O fato de Sílvio Santos ter substituído, em seu plágio, anônimos por “artistas” não muda em nada, pois vários destes “artistas” não passavam de anônimos para o grande público antes que o programa começasse. Sou sempre o primeiro, depois de Diogo Mainardi, a criticar o Brasil, mas nesse caso é injusto utilizar este fato para fazê-lo. Se o programa peca por alguma coisa, é pelas péssimas qualidades de som e imagem, e por ser absolutamente tedioso para qualquer espectador com um mínimo de critério. Mas não é melhor nem pior que todo o resto do lixo transmitido pelos canais brasileiros, ou estrangeiros. That’s the point. Todas as TVs do mundo são terríveis, e os programas de maior audiência, sejam na Suécia, sejam na Holanda, Alemanha, Inglaterra, EUA ou Brasil, são lixo puro. A TV não é o veículo de comunicação mais indicado a quem deseja uma opção cultural de nível e qualidade, mas muitos ainda não enxergaram isso e insistem em esperar dela algo superior. É como ir ao McDonald’s e esperar comer côte d’agneau farcie à la provençale.

Cultura?
A TV Cultura resolveu nesta segunda-feira demitir a apresentadora Sonia Francine, a Soninha, num hediondo e fascista ato de intolerância, sem precedentes no meio televisivo brasileiro - apenas porque a mesma havia declarado a uma revista semanal que fumava ocasionalmente seu baseadinho. É mais uma prova de que nada, e especialmente um meio de comunicação, pode ser gerido satisfatoriamente pelo Estado. É pena que logo a Cultura tenha feito isso, logo ela que eu julgava ser uma das poucas TVs que tinha algo de relevante a mostrar para a sociedade, e a única a mostrar espetáculos de música clássica. (Claro que ela passa muita, mas muita besteira, como programas educativos de quinta categoria que exigem paciência de Jó do telespectador, e infantis que somente uma criança mongolóide filha de pais autistas assistiria, como o ultra-hyped Castelo Rá-tim-bum).
Mas o que mais revolta na história, no entanto, mais que a atitude imbecil da empresa em si, foi a maneira como ela foi feita – a covarde decisão foi tomada apenas minutos antes do programa ir ao ar, e no lugar deste foi veiculada uma vinheta praticamente “esculhambando” a apresentadora, quase chamando-a de “criminosa”. Além disso, o motivo dado (a apresentadora estaria confessando a prática de atividades ilícitas, e isto não poderia ser vinculado à imagem do programa) foi de uma hipocrisia única, já que a apresentadora não fez a declaração durante o programa, não tendo portanto jamais o associado ao que disse. A caretice da sociedade brasileira, que se esconde travestida de liberalismos infantis como mulheres nuas no carnaval e piercings nos umbigos das filhinhas de papai mais uma vez mostra sua horripilante face... e, o que é pior, de onde é que vem o cheiro putrefato da repressão? De uma empresa pública, um órgão que exatamente por isso deveria dar o exemplo e demonstrar o respeito e o estímulo a uma sociedade pluralista e democrática, e não utilizar de táticas baixas como estas. Agora Soninha foi lançada aos cães; e os Afanázios Jazadjis e Datenas da vida não demorarão em dilacerar seu corpo, aplaudidos pelos “pais de família”, que seguram seus copinhos de whisky do alto de seus pedestais de moralidade, enquanto põem suas melhores caras-de-pau.

Legalizar ou aceitar?
A grande verdade é que apenas questão de tempo até que as chamadas “drogas leves”, como a maconha (ou até mesmo as outras, for that matter), sejam liberadas, ou “descriminalizadas”, ainda que com alguma espécie de controle do Estado. Parece-me uma tendência irrefreável da sociedade moderna, um óbvio ululante contra o qual apenas resquícios incompreensíveis de irracionalidade ainda possam se opor. É algo que deveria pelo menos ser discutido, e talvez esse caso da Soninha venha a calhar, apesar dos pesares, gerando reflexão sobre o assunto e colocando em pauta o assunto na sociedade. É de se pensar se valem a pena todos os esforços destacados para esta “guerra contra as drogas”, ou se não é um dinheiro que acaba sendo jogado fora, financiando ainda mais violência, mais mortes, e propiciando que pessoas com más intenções se aproveitem da falta de alternativa dos usuários misturando químicos que causam ainda mais problemas de saúde nos usuários que as próprias drogas - apenas para proibir e se tentar lutar contra algo que irá acontecer de qualquer maneira. É de se pensar se o governo não poderia se beneficiar do dinheiro recolhido em impostos no caso de uma eventual legalização, exatamente para tentar amenizar este problema das drogas, ao invés de gastar recursos prodigiosamente numa tentativa inútil de eliminar um mal inevitável. É de se pensar se vale a pena deixar que as forças policiais sejam corrompidas por propinas pelos traficantes, que nosso sistema judiciário, nossos deputados e senadores, se envolvam de tal maneira com o tráfico e o crime “organizado”, lavando e desperdiçando nosso dinheiro, e o que é pior, sob a máscara hipócrita e maniqueísta da luta do bem contra o mal? A melhor maneira de acabar com os traficantes e o mal que eles trazem consigo continua sendo retirar o mercado das mãos deles; e só há uma maneira de fazer isso.

Citar é preciso.
“Which is better: to have Fun with Fungi or to have Idiocy with Ideology, to have Wars because of Words, to have Tomorrow’s Misdeeds out of Yesterday’s Miscreeds?”
- Aldous Huxley



Rafael Azevedo
São Paulo, 23/11/2001

 

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