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Sexta-feira, 26/3/2010 [email protected] Ana Elisa Ribeiro "A velocidade não é mais a mesma. Foi o que eu concluí depois de tanto tempo sem conseguir responder à sua carta. Naqueles tempos do colégio, e logo depois também, tínhamos certa agilidade no diálogo, mesmo sem e-mails. Nem se falava nisso, aliás. Eram as cartas e os telefonemas. E fomos reunindo nossas histórias por escrito. Hoje já não consigo mais escrever cartas e ir aos Correios com tanta eficiência. Ainda se eu tivesse uma agência por perto, mas não é o caso. É preciso sair para ir aos Correios, especialmente para isso. Cá estou, depois de tanto tempo. E temi que você me considerasse uma amiga relapsa ou uma negligente." Foi assim que iniciei uma carta a um grande amigo de escola, depois de muitos anos, quando recebi dele uma correspondência real completamente inesperada. Ele se arriscou, pois mudei tantas vezes de endereço, mas me achou, porque sempre tenho raiz em algum lugar. Assisti a algum programa de televisão pela metade em alguma semana de janeiro, quando estive de férias, e pratiquei o que mais gosto de fazer na vida: dormir quando dá sono. E como o sono não vinha, zapeei canais madrugada afora e ouvi alguém dizer, não sei bem em que programa, que a internet prejudicou demais algumas coisas, sendo o hábito da leitura a mais importante delas. E dizia aquele homem jovem que a juventude hoje não lê mais, que a internet estragou tudo, que a leitura faz coisas maravilhosas pelo cérebro etc. E citava até pesquisas científicas, porque, para quem ainda não sabe, citar pesquisas científicas confere à bobagem dita certo ar de "comprovação", uma estratégia de argumentação das mais eficazes, só perdendo para a citação das ditas estatísticas. Ouvindo aquela baboseira divertida, dita com tanto entusiasmo e saliva, lembrei-me de um programa de TV a que fui certa vez, não muito longe no tempo, cujo público-alvo são os adolescentes. A produção é caseira, a emissora é local, as intenções são ótimas. Não se trata de qualquer coisa, mas de programa duradouro, relativamente conhecido do público juvenil. O cenário simples é pequeno, acaba logo ali, depois do tapete escuro, onde ficam as arquibancadas e um palco para o convidado musical da rodada. Eu estava lá porque o tema era "cartas". Não sei por que se lembraram de mim, mas confesso ter gostado demais da lembrança. Mandei muitas e muitas cartas, de verdade, antes de me tornar alguém que só recebe contas a pagar e propagandas. Minha caixa de correio já foi bem mais agitada e divertida. Minha carreira de missivista começou bem cedo, quando descobri que escrever o que eu sentia me dava um alívio danado, resolvia problemas de relacionamento, expurgava o que me asfixiava e ainda por cima podia impressionar pessoas. Isso foi na mais tenra adolescência, especialmente quando comecei a ter namoradinho. Nas escolinhas dos finais dos anos 1970 e inícios dos 1980, não havia ainda tanto projeto de carta, tanta aula de gênero textual e nem tanta ênfase em coisas que eram comuns. Carta virou excentricidade depois de outras tecnologias mais automáticas surgirem. Mesmo assim, devo ter escrito cartinhas para papai e mamãe, especialmente em datas festivas. E isso me faz lembrar meu primeiro plágio, quando, carinhosamente, copiei uma letra bonitinha do Balão Mágico para um "dia dos pais" e meu querido progenitor ficou emocionado, achando que era minha mesmo. Desfiz o engano rapidamente, mas senti uma vergonha danada de não ter escrito algo para ele de verdade. Talvez esse episódio me tenha dado o fôlego que tenho até hoje para estes assuntos escriturais. Na adolescência, minhas cartas solucionaram uma série de situações que eu, tímida que era, jamais teria resolvido no modo "conversação": briga de amigo, explicação de situações ambíguas, ataques de ciúmes, pedidos de desculpas, pedidos de socorro, ameaças de suicídio e até o efeito bem pragmático de trazer um namorado de volta da praia, para onde ele tinha ido sem minha permissão. Ao longo dos anos, me aperfeiçoei na redação das correspondências, aprendi procedimentos dos Correios, comprei muito selo para casos de emergência, visitei muita agência espalhada pela cidade (e por outras), colecionei canetas e papéis coloridos, desenvolvi meu amor por papelarias sortidas e ajustei meus problemas de redação. Brincando, brincando, escrevi muitas e muitas cartas, talvez mais de mil. Só para o Vinícius, meu amigo da carta aí de cima, foram cinco anos completos de correspondência intensa. O bacana é que ele morava em Belo Horizonte mesmo, em algum bairro na zona oeste, enquanto eu morava na zona nordeste. O telefone tocava de vez em quando, mas ainda não existia celular. E a gente achava bom mesmo era esperar a resposta do que havia perguntado, de olho na chegada discreta do carteiro. Quem não se lembra de uma relação de cumplicidade com o carteiro? Acho melhor não fazer a pergunta... As cartas do Vinícius estão todas guardadas. Uma vez, tive a paciência de digitar tudo. O arquivo está em algum lugar deste HD, mas não tem as cores, o cheiro e os desenhos dos originais. A despeito de tudo isso, dessa relação afetiva com a experiência de mandar cartas, não achei a menor graça quando as pessoas, no programa em que fui falar delas, trataram logo de compará-las aos e-mails, dizendo que as cartas são mais bonitas, gostosas e afetuosas do que as mensagens em meio digital. Sabem por que achei isso ingênuo? Por várias razões: a) Porque as cartas guardam, sim, particularidades que os e-mails não guardam, mas os e-mails guardam particularidades que as cartas não... enfim... Troquei milhares de e-mails afetuosíssimos com amigos e namorados, conheci meu marido por e-mail, correspondi-me com parentes e amigos queridos e nem por isso achei que estivessem sendo menos calorosos em bits. Que coisa. O tom do e-mail depende de com quem a gente interage, não simplesmente do browser que a gente usa; b) um incômodo maior foi a hipocrisia daquelas pessoas. A maioria absoluta delas jamais se serviu de uma carta na vida. Jamais escreveu a carta, lambeu o selo, fechou o envelope com aquela cola melecada dos Correios, pediu para registrar e esperou a resposta. 99% daquele pessoal eram colegiais "nativos digitais". Se a maior parte dos meus amigos (da geração anterior) jamais escreveu uma carta, por que razão esta turminha escreveria? Eles têm muito mais desculpas do que meus amigos para não saber nem mesmo como subscrever envelopes. Hoje em dia, os adolescentes só conseguem relatar que escreveram cartas quando têm algum professor de redação mais empolgado ou quando a escola adota certos livros didáticos que tomam a carta como tema de atividades interessantíssimas. (É claro, perdoem-me os jovens que estão de fora dessas generalizações). Acho engraçado demais quando as pessoas romanceiam coisas que elas mesmas não fazem, não conhecem ou sequer têm como prática esporádica. Escrever qualquer coisa costuma ser uma prática esporádica... quanto mais escrever cartas, que demandam certa movimentação a mais para o envio. De fato, e-mails são uma delícia. A velocidade deles, a surpresa de encontrar alguém que a gente achava intocável quando a cultura impressa era hegemônica, trocar farpas e ideias com pessoas com quem provavelmente teríamos perdido o contato... é... porque tem gente que não mereceria nosso esforço de lamber um selo. Antes disso, muito antes, tem assunto que a gente deixaria para depois ou para nunca; tem papo que a gente levaria por telefone; tem gente que não contactaríamos jamais; tem pessoas a quem a gente nem responderia. O Vinícius, que era, de fato, meu amigo, merecia muitas cartas e muito selo lambido. Antes que pensem besteira, ele era meu amigo mesmo, confidente, leal, indispensável (como pouco namorado pode ser). Mas além do Vinicim, havia cartas de outros amigos e amigas, de colegas mais distantes, de quem foi morar fora do estado, de namorado, de noivo, de poeta, de romancista, de tradutor. Carta curta, carta grande. Telegrama e cartão de Natal. A Dayse envia cartões de Natal até hoje e sempre me surpreende. Outro dia eu disse aqui que Kindle não é livro. Não tem conflito. Da mesma forma e guardando-se as proporções, carta não é e-mail. O negócio é que cartas eram mais trabalhosas do que livros, porque a gente tinha de escrevê-las, e não apenas lê-las. E se as pessoas já não encaixam em suas vidas um espacinho para ler, imagine-se o resto... Ana Elisa Ribeiro |
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