|
Terça-feira, 9/2/2010 Eric Clapton ― envelhecendo como um bluesman Diogo Salles Muro perto da estação Islington ― Londres, 1966 Falar em "melhores da década" é um tema amplo demais. Como não quero ficar atirando para todos os lados, prefiro colocar essa pauta num plano mais fechado. Em diversos textos que escrevi aqui, procurei analisar o cenário musical de diferentes maneiras, mas todos eles tinham um ponto de convergência: essa primeira década do milênio foi de uma pobreza musical quase inverossímil. Pelo menos no que tange o mainstream. Em minhas intermináveis discussões musicais com Rafael Fernandes, vivo insistindo que não houve renovação no rock desde a derrocada do grunge. Parece ter se segmentando ainda mais e formado novos guetos no heavy metal para os xiitas se acotovelarem. Já o pop nem se fala: parece ter morrido antes mesmo de Michael Jackson ― e do que restou, só o resto mesmo: a mesma porcaria venal e pasteurizada de sempre. No rock clássico, alguns se reciclaram, outros seguiram adiante e boa parte se aposentou (embora a maioria ainda não saiba disso). Entre mortos e feridos, eis o que eu queria dizer: para mim, Eric Clapton foi o músico da década. Músico e guitarrista. Tudo bem, sei que é fácil ser o melhor músico numa década em que qualquer sinal de virtuosismo é visto como "ultrapassado" e ser medíocre é "cool". Mais fácil ainda é ser o maior guitarrista numa década em que Jack White é ovacionado como o guitar hero dessa geração. Pode funcionar para quem só quer pagar de "descolado", mas a crítica musical, que disseminou esse espírito de manada pró-Jack White, parece ignorar que Clapton ― além de ser infinitamente mais importante ― foi o artista mais prolífico dos últimos dez anos. Não é só a maneira de tocar, é o timbre, é a voz (cada vez mais rouca), são os shows, as parcerias, é o partido artístico de uma forma geral. Eric Clapton parece ser uma espécie de Clint Eastwood do blues-rock: quanto mais velho, melhor fica. Parece envelhecer como os bluseiros que tanto o inspiraram. Ícone musical e guitarrista prodígio dos anos 1960, ele se afogou no álcool e nas drogas nas décadas seguintes, até ressurgir sóbrio no excelente álbum Journeyman (1989) e explodir comercialmente com Unplugged (1992). Chegados os anos 2000 ― e já não tendo de provar mais nada a ninguém ―, Clapton resolveu fazer um mergulho profundo em si mesmo, realizando todos os seus sonhos musicais, indo buscar suas raízes e, de quebra, reconstruindo sua vida pessoal. Então vamos deixar a crítica lá, jogando capim para os búfalos. Aqui, vamos reconstituir o caminho do Slowhand nos últimos dez anos. 2000 ― Para começar a década, nada como tocar com B.B. King, que dispensa apresentações. O sonho era antigo (de ambas as partes), o repertório escolhido para o álbum foi muito bem selecionado e o time de músicos que os acompanharam é fantástico. Entre standards do lendário Blues Boy King, como "Three O'Clock Blues", e "Ten long years", adicionados a rocks suingados e músicas novas, Riding With the King já nasceu clássico e rapidamente se tornou multi-platinado, além de arrebanhar o Grammy de melhor álbum de blues. Outros destaques ficam para a faixa-título, "Marry You", "Hold on, I'm comin'" e "I wanna be". O diálogo de guitarras é um deleite, com Clapton e seu freaseado característico em sua Fender Statocaster e B.B. King fazendo sua Lucille chorar. Pura magia, do começo ao fim. 2001 ― Tempo de lançar um disco de inéditas, coisa que não acontecia desde o ótimo (e triste) Pilgrim (1998). Assim, Reptile nasceu de uma evolução de Riding With the King, mas com um outro conceito. Mais variado, ainda trazia elementos de blues ("Got you on my mind"), mas também mesclava rock ("Travellin' light"), pop ("Believe in life") e até uma pegada meio bossa (na faixa-título). A subsequente turnê foi a última que passou pelo Brasil. Graças a deus, ou melhor, graças a Clapton, estive lá para presenciar. Muitas críticas que ouvi na época dão conta de que ele não "agitou" muito no show. Quanta bobagem. O público não vai a um show do Eric Clapton para vê-lo "agitar", e sim, para vê-lo tocar. Sua música não é de arena e ele nem faz pose de guitar hero (não precisa disso). O anticlímax do início, com um set acústico, foi intencional, servindo de contraponto a todos os clichês do gênero. Agora, com o perdão da rabugice: quem procura "agito", que vá a um bloco de axé e não encha o saco. 2002 e 2003 ― Os dois anos seguintes foram de descanso e dedicação à família, que continuava aumentando. Mesmo assim, Clapton participou de alguns shows como convidado especial e organizou o concerto em memória ao amigo George Harrison. E a turnê de Reptile rendeu o registro ao vivo (em CD e DVD) One More Car, One More Rider, mais um item que foi direto para a coleção dos "claptomaníacos" (sem trocadilho, por favor). 2004 ― De volta à labuta, Clapton queria lançar um álbum tendo a família como temática. As primeiras seções não se mostraram muito animadoras e, diante da falta de inspiração, perambularam pelo repertório de Robert Johnson. Me and Mr. Johnson nasceu assim mesmo, despretensioso. Além de preencher a lacuna, serviu como tributo prestado a um de seus maiores heróis. Algumas versões soaram repaginadas, como em "Milkcow calf blues" e "Travelling riverside blues". Outras se aproximaram um pouco mais da atmosfera original, caso de "Little queen os spades" e "Me and the devil blues". Na estrada, além da turnê, foi realizado também o Festival Crossroads, que trazia guitarristas do quilate de B.B. King, Buddy Guy, Jimmie Vaughan e Jeff Beck. 2005 ― Num ano de intenso trabalho, eis que o tal "álbum da família" finalmente saiu. Back home é talvez seu melhor disco de inéditas desde Journeyman. Equilibrando todas as suas influências, o álbum traz o que ele sempre fez de melhor em sua carreira: da levada pop de "So tired" e "Piece of my heart" à leveza soul de "One day" e "I'm going left". Já "Revolution" traz ecos de Bob Marley, lembrando os tempos em que "I shot the sheriff" explodiu comercialmente nas mãos de Clapton e apresentou o rei do reggae ao mundo. "Lost and found", música de Doyle Bramhall II, é um blues-rock classudo que só poderia soar tão bem (como soou) nas mãos do Slowhand. E nesse mesmo ano, ele ainda encontraria tempo para reunir seus antigos companheiros Jack Bruce e Ginger Baker e remontar o Cream para uma série de apresentações em Londres e Nova York. Nos shows, registrados no DVD Royal Albert Hall London May 2-3-5-6 2005, clássicos obrigatórios como "Badge", "White Room" e "Sunshine Of Your Love". 2006 ― JJ Cale sempre foi um grande colaborador da carreira de Clapton, seja como guitarrista, seja como compositor. A ideia inicial seria mais um álbum de inéditas, mas em Road to Escondido a longa parceria foi finalmente celebrada ― e os créditos exaltados, com JJ à frente. Influências de country predominam no repertório, destaque para "When this war is over" e "Last will and testament". Mas há também espaço para o blues, com "Sporting life blues" e para músicas lentas, como a belíssima "Heads in Georgia" e a climática "Hard to thrill". O ano foi marcado também por uma massiva turnê mundial que, infelizmente, não chegou à América Latina. 2007 ― Ano de dar uma parada e se recuperar da extenuante turnê que passou. Tempo de lançar a tão aguardada autobiografia, que traz relatos "dolorosamente honestos", como explica o texto da orelha. Uma história que, em alguns momentos, beira o surreal. Nada escapa de sua memória: o vício em heroína (e depois em álcool), o tumultuado triângulo amoroso com Pattie Boyd e George Harrison, a trágica morte de seu filho Conor... E toda a história é costurada pela pungente lembrança do abandono de seus verdadeiros pais na infância, fato que constantemente voltava para assombrá-lo. Leitura vertiginosa e obrigatória para qualquer musicólogo que se preze. Para acompanhar esse lançamento, saiu também o CD duplo Complete Clapton, que reúne o guitarrista em todas as suas fases e talvez seja sua coletânea mais enxuta e bem editada. O combo CD+livro fica como um importante porta-retrato de sua carreira e se torna a compra mais indicada para os não iniciados. 2008 e 2009 ― No ano seguinte, era hora de ressuscitar mais uma grande parceria nos anos 60. Eric Clapton e Steve Winwood já vinham discutindo a possibilidade dessa reunião há algum tempo e ela finalmente aconteceu. O que seriam apenas algumas apresentações em Nova York acabou se tornando uma turnê (que rende shows até hoje) e gerou o CD e DVD Eric Clapton and Steve Winwood ― Live from Madison Square Garden. Nele, além dos clássicos das duas carreiras solo, foi passada a limpo a curta vida do Blind Faith, banda que só durou um disco (autointitulado, lançado em 1969). Clássicos não faltaram, como "Had to cry today" e "Presence of the lord", além de uma sublime versão de "Can't find my way home". Bom, precisa falar mais? Uma década que começou com B.B. King e terminou com Steve Winwood não podia ser menos do que brilhante para Eric Clapton. São em tempos como esses que a famosa pixação "Clapton is God" nos muros de Londres ganha outra conotação. O próprio Clapton pode até ter rejeitado o título nos anos 60. Agora, não pode mais. Um cara que foi fã de Robert Johnson, aprendiz de Muddy Waters, admirador de John Lee Hooker, seguidor de Buddy Guy, parceiro de John Mayall, contemporâneo de Jimi Hendrix, rival de Jeff Beck, amigo de George Harrison, companheiro de reabilitação de Stevie Ray Vaughan, ídolo de Eddie Van Halen (e de uma miríade de grandes guitarristas)... É uma história que se confunde com a própria evolução do rock ― e de como a guitarra se tornaria seu objeto de culto. Além de já ter tocado com os músicos mais importantes e respeitados do mundo, ele transitou pelos mais variados gêneros, sem medo de explorá-los: blues, rock, pop, jazz, soul, country, reggae. Não sendo um virtuose (ele é o Slowhand, lembram?) e passando ao largo de toda essa mediocridade pseudo-cool (em voga hoje), ele subverte a dicotomia do "atitude x velocidade", tão cara aos guitarristas. Clapton já seria um gênio pelo simples fato de usar basicamente escala pentatônica do blues e nela colocar a sua marca, conferindo-lhe conceito, sofisticação e complexidade. Mas foi além. Se você for um purista e quiser cavar fundo para descobrir todas as ramificações na árvore genealógica dos grandes guitarristas, invariavelmente passará por Eric Clapton. E descobrirá que, realmente, Clapton é Deus. Para ir além Diogo Salles |
|
|