busca | avançada
52329 visitas/dia
1,9 milhão/mês
Terça-feira, 27/11/2001
Sujando os dedos de graxa
Rafael Lima



Para alguém formado em engenharia mecânica, tenho um defeito sério: não gosto de graxa. O que era uma leve suspeita se confirmou quando eu vi trocarem a graxa de um destorcedor. Não vou nem me dar ao trabalho de explicar aqui o que é um destorcedor, basta dizer que é uma peça de partes metálicas rotativas, e como tal, precisa de lubrificação. Ver aquela gosma escura e viscosa sendo lentamente expulsa pelo furinho da graxeira foi uma experiência definitiva. Encerrei ali um ciclo que provavelmente teve início quando resolvi minha primeira integral dupla, e prosseguiu preenchendo pouco a pouco minha cabeça com representações pictóricas e estilizadas, enquanto deixava os dedos cada vez mais distantes de uma hipotética graxa.

Perdi a conta das queixas grupais que ouvi no período universitário do curso ser excessivamente teórico. Calculava-se o rendimento energético de turbinas sem nunca ter visto as pás de uma; melhorava-se a eficiência de Ciclos Otto, sem ao menos ter visto o motor do próprio carro. Ouvia-se a eterna cantilena repetida pelos professores de que "técnicos nunca vão chegar ao nível de engenheiros porque não projetam", mas aquele sentimento de que alguma coisa estava sendo perdida permanecia. É claro que alguns estudantes, os mais apaixonados, faziam das tripas coração para reverter aquela situação, roubando ao sono e ao estudo horas gastas na curiosidade de desmontar um carburador, mas não conheci nenhum que tivesse chegado a sujar os dedos de graxa o suficiente para acumular algum conhecimento empírico.

Apenas anos depois eu viria a entender do que se sentia falta, e por que. Era um problema secular, muito maior do que uma simples crítica ao sistema educacional poderia supor. Historicamente, o estudo do comportamento dos materiais sempre foi campo de engenheiros e artesãos, não de filósofos e cientistas, que ao reduzirem a matéria a conceitos como massa, na Física, ou átomo, na Química, tiveram conseqüências indesejáveis, como anotou o metalúrgico e expert na história de materiais Cyril Stanley Smith:

"... a sensitividade à maravilhosa diversidade de materiais reais se perdeu, inicialmente porque pensamento filosófico menosprezou os sentidos, depois, porque... a nova ciência podia lidar apenas com uma coisa de cada vez. Era atomística, ou, pelo menos, simplista, na sua essência."

Manuel De Landa, no ensaio Variabilidade e Uniformidade, afirma que à medida que os significados da especulação metafísica ocuparam o lugar dos significados físicos originais da matéria, os últimos se perderam, "e a variabilidade e a complexidade dos materiais reais foi substituída pelo comportamento uniforme de uma matéria simplificada filosoficamente, sobre a qual podia-se especular apenas simbolicamente". Centenas de anos dessa troca de postos culminaram, entre outras coisas, num "intenso processo de uniformização e homogeneização na composição química e na estrutura física do aço e outros metais industriais. (...) Mas essa homogeneização também afetou os engenheiros que projetavam estruturas utilizando esses materiais disciplinados." Ou, nas palavras de James E. Gordon:

"... Processos de fabricação podem ser quebrados em vários estágios diferentes, requerendo um mínimo de habilidade ou inteligência... o projeto de muitos componentes, tal como engrenagens, pode ser reduzido a uma rotina encontrável em manuais." (o grifo é meu)

Ou seja, em última análise, aquela falta de contato, táctil, cotidiano, com equipamentos e materiais, que me causava insatisfação e era menosprezada em certos altos escalões acadêmicos, aquela ausência de uma "consciência sensorial" que me trazia desconforto tinha origem nas mais antigas concepções filosóficas da matéria. Afinal, engenharia não era a ciência de engenhar, de conceber soluções para os problemas? Essa minha sensação de algo errado chegava ao cúmulo em Projetos de Máquina II, ao dimensionar um redutor de velocidade completo em quando o mais perto que tinha chegado da fabricação de uma engrenagem tinha sido cortar um único de seus dentes na plaina, ou projetar uma cremalheira, equipamento cuja existência ignorava até o início da aula. A graxa e os dedos pareciam irremediavelmente separados.

Com o tempo, o ânimo criativo arrefeceu, perdi o senso lúdico em mexer com ferramentas, e aquele antigo desejo de fazer robôs ficou esquecido em um canto da memória. Passar em frente à uma loja de ferragens já nem tinha aquele efeito de imã mostrado no décimo quarto capítulo do livro O Princípio Dilbert, fundamental para se entender essa turma formada em ciências exatas. O homo faber interior cada vez menos se manifestava. Até que um dia alguém me fala num programa de televisão do Discovery Channel - o não era obrigatoriamente sinal de boa notícia; metade dos documentários só são interessantes para nerds e professores de Trocadores de Calor II. Partia de uma premissa simples: dois times, com cinco pessoas cada, tinham 10 horas para construir um determinado equipamento com as ferramentas comuns de uma oficina - solda, maçarico, torno mecânico - tendo por matéria prima tudo que pudessem garimpar num imenso ferro velho. A Guerra do Ferro Velho (JunkYard Wars).

Avaliar o programa em termos meramente televisivos já é enxergar um bom produto. A montagem é ágil o suficiente para transformar horas de ralação em oficina numa empolgante disputa contra o tempo, comentada em tempo real, como num jogo de futebol, por um "especialista imparcial". Apesar de sofrerem da síndrome de VJ metido a engraçadinho, o tempo de exposição dos apresentadores é reduzido; limitam-se a avisar quanto tempo falta, servir de interlocutores para o comentarista e, mais interessante: explicar, às vezes em off, sem causar interferências, o que se passa na cabeça dos construtores, quais princípios físicos estão sendo aplicados - sem usar os nomes dos teoremas. Mesmo quando o dedo da produção aparece, ao criar nomes-de-guerra (Artemaníacos, Irmãos Long, Velhotes Enferrujados) e vestir com uniformes os times, ou ao plantar equipamentos necessários - não era muita coincidência encontrarem 3 compressores em bom estado num ferro velho só? - para o bom desempenho das equipes, o ridículo e o fake é compensado pela beleza de ver aquele monte de lixo funcionando. Mas o grande barato mesmo é ver os inventores em ação.

Em geral é um veterano com vasta experiência de campo, o convidado a liderar a equipe, quem delineia o projeto básico do dispositivo, que pode ser uma catapulta, um mecanismo de respiração para mergulho (pulmão artificial), um foguete - até um hovercraft eu já vi sair dali. Dois, para ser mais exato: um de cada time. Diagramas animados tomam conta da tela e explicam os princípios empregados por cada time para o telespectador. Salta aos olhos a capacidade de síntese, a simplicidade da concepção nesse momento. A catapulta que certo grupo projetou soava rudimentar quando comparada ao canhão de ar comprimido com compressor acionado por 2 bicicletas do outro grupo, mas foi capaz de atirar as abóboras-projéteis com igual ou maior precisão. Por que usar dois motores num hovercraft se um é suficiente para criar o colchão de ar necessário para erguê-lo do chão e impulsioná-lo para frente? Por que criar uma peça nova, gastando horas de usinagem no torno quando basta desmontar aquela sucata ali do canto, para pegar a pecinha que se presta exatamente? Porque pensar na aerodinâmica de um foguete se o formato cônico garante obrigatoriamente sua estabilidade na subida? Sobretudo, porque tentar inventar um dispositivo para controle de fluxo, quando é muito mais fácil encontrar uma válvula velha no lixão?

Durante a colheita da sucata, fica evidente como as decisões fundamentais simplificam o resultado final: genialidade. A facilidade de encontrar o que se precisa, e de não utilizar cinco peças para construir o que se pode fazer com três. Ou: como fazer um hovercraft a partir de uma plataforma de isopor, um compressor, uma lona de barraca e um duto de ventilação - e muito arame. A montagem dos equipamentos, merecidamente, ocupa a maior parte do programa, porque é onde se vê o engenho humano em total ação: azeite pode ser utilizado como um razoável lubrificante. Como esculpir uma ogiva para o foguete no bloco de isopor daria muito trabalho, a solução foi espetá-lo na broca de uma furadeira, transformando-a, assim, num tipo de torno rudimentar, perfeito para modelar sólidos de revolução. Basta aumentar o tamanho do braço da alavanca para que o esforço de bombear o ar dos primitivos equipamentos de mergulho se reduza. Como pequeninos cuidados com os detalhes aumentam a estabilidade, isolamento elétrico ou o rendimento. São engenheiros, técnicos, arquitetos, gente de prática e intimidade com máquinas, habituada a sujar o dedo de graxa, fazendo sair leite de pedra a partir da meia dúzia de fenômenos quase cotidianos.

A Guerra do Ferro Velho, ao mostrar os inventores absolutamente envolvidos na tarefa de construir artefatos praticamente do nada - afinal ali tudo é uma questão de tempo (como a eterna luta pela sobrevivência) - ao mostrar o que a criatividade corretamente direcionada, a imaginação com foco e a teoria legitimada pela prática são capazes de fazer, reacende a chama da paixão inventiva em qualquer um que já tenha achado seus brinquedos simples demais em algum momento da infância. A mim, me ajudou a lembrar por que mesmo eu tinha ido fazer engenharia mecânica (eu quase tinha esquecido). Quem sabe eu até volte a sujar os dedos de graxa...

Para ir além:
A Guerra do Ferro Velho: quintas-feiras, 19h00 e 24h00 no Discovery Channel
Uniformity & Variability - Manuel De Landa
O Princípio Dilbert - Scott Adams, Ediouro, 1997

Rafael Lima
Rio de Janeiro, 27/11/2001

 

busca | avançada
52329 visitas/dia
1,9 milhão/mês