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Quarta-feira, 28/11/2001
Profissão sem fé
Daniela Sandler

Você tem às vezes o desejo de falar com o autor de um livro ou filme favorito (ou odiado)? Eu, quando mais nova, em vez de me apaixonar por galãs de cinema, me apaixonava pelos diretores. Queria encontrar todos eles. Quantas vezes não me remoí de raiva por ter nascido oitenta anos depois do necessário para ter tido ao menos a chance remota - mas possível - de cruzar o caminho deste ou daquele escritor?

O curioso é que descobri um insuspeitado pudor quando tive a chance de dialogar tête-a-tête (ou quase) com o diretor de um filme que me impressionou. Curioso... ou nem tanto. Essa coisa de pôr autor e obra juntos à disposição do público não é tão simples assim, ainda mais nesses tempos de maratonas promocionais e tudo-é-mercadoria em que vivemos.

No dia 17 último, Peter Bogdanovich (diretor de A Última Sessão de Cinema) veio a Rochester apresentar seu filme mais recente, The Cat's Meow. Fez a introdução; o filme foi exibido; e depois o diretor respondeu a perguntas da platéia.

Bruno Weiszflog

O filme, incidentalmente, tem a ver com muitos temas que me perseguem atualmente, em minhas pesquisas. Daí que me fez pensar sem parar, ainda que imersa naquele estado semi-hipnótico que os filmes provocam; durante e depois do filme minha cabeça pipocava com perguntas e idéias. Mas, quando o diretor subiu ao palco, fiquei muda. A platéia e o curador da cinemateca dispararam as questões de costume: o porquê deste ou daquele recurso estético; curiosidades de bastidores; esclarecimentos técnicos; motivações pessoais; perguntas sobre outras obras (ainda mais agora que Bogdanovich tem fama adicional como ator - interpreta um psiquiatra na série The Sopranos, hit da HBO).

Armada com minhas questões, ao ver o diretor sobre a cadeira iluminada, de repente achei que teria o poder de expor, desvelar, despir com meus comentários. Esse momento "peep-show" foi rápido, perdeu-se nas perguntas mundanas que se seguiram, mas foi o suficiente para me calar.

Na minha breve experiência como repórter, lembro-me de entrevistas coletivas, nós os jornalistas subindo uns em cima dos outros para fazer nossa pergunta chegar ao centro da atenção: ganha quem grita mais alto, não há tempo para questões inteligentes, ninguém tem pruridos. Nem eu tinha, com a usual adrenalina de foca, repetindo a mim mesma que repórter tem licença para ser chato. Uma vez fiz uma pergunta que tirou do sério um político conhecido por sua fleuma impenetrável. À época, orgulhei-me do feito heróico. Hoje, a lembrança exemplifica meu pudor presente.

Claro, há perguntas e perguntas. Há as tais meras curiosidades, há os fatos inconseqüentes; há as perguntas-plataforma, para fazer o entrevistado brilhar; as mal-intencionadas, para fazê-lo afundar (o que no fim dá no mesmo, em espírito); as vaidosas, para fazer brilhar o inquisidor. Não é dessas que falo; ou melhor, não são essas as minhas perguntas.

Diálogo

Por mais que gostasse de saber por que o diretor escolheu determinada atriz ou locação, ou de esclarecer passagens obscuras, ou de descobrir a "moral" da história, não é esse tipo de inquérito que me parece valioso quando se tem a chance de um contato com o artista. Mesmo porque as decisões são muitas vezes circunstanciais, aleatórias ou compulsórias; e quanto à "moral" da história, nada garante ser o autor a autoridade interpretativa. O que me encanta nesse contato é a chance de conhecer a pessoa que criou, nem que seja para me decepcionar; de conversar sobre a obra, sim, talvez até mesmo discutir significados, mas para avançar o entendimento, criar um novo diálogo, e não simplesmente verificar ou testar interpretações.

Criar um novo diálogo, no entanto, é arriscar o novo, falas inesperadas; é rasgar o roteiro de respostas-prontas, respostas-fáceis - pensar junto, talvez. Nada menos parecido com o espetáculo usual do diretor que acompanha seu filme (não haveria de ser o contrário?). Pois, como mencionei acima, nossos tempos são de maratonas promocionais, por mais sofisticadas ou desinteressadas que pareçam. Ainda que eu tenha visto o filme numa cinemateca, instituição não-lucrativa; ainda que o lançamento comercial esteja previsto para daqui a quatro meses, tempo longínquo em termos publicitários; ainda que nós naquela platéia compartilhássemos a pose de "amantes da arte" (resistindo bravamente aos cineplex), não consigo me livrar da impressão de que o diretor estava lá para "promover o filme", talvez menos por interesse e mais por piloto-automático.

Ingenuidade

Afinal, o que me impressionou, de cara, quando Bogdanovich fez sua aparição, foi a cancha, o jogo-de-cintura, a desenvoltura com que se colocou e falou em público. Das piadas à empostação de voz, da empatia imediata à naturalidade, tudo me fez pensar na forja do contato contínuo com mídia e público e do trabalho um tanto "fantasioso" de diretor e ator. Ele nos entreteve de modo natural, eficiente: de um lado, comportamento adquirido por hábito, costume; de outro, passos ensaiados, aperfeiçoados pela repetição - como as imitações de Orson Welles e John Huston.

Meu desconforto vem em parte do fato de que uma "conversa" com o público contém a promessa do contato espontâneo, não-planejado - o diretor de cara-limpa, por assim dizer. Vindo dos bastidores, como se a artificialidade fosse parte apenas da produção da obra, e como se a representação fosse privilégio dos atores.

Lembrei-me de outros diretores que vi apresentando filmes, e de como eu havia tido a mesma impressão: com variações individuais, a mesma sensação de facilidade excessiva no contato com o público - esse bando de gente estranha, afinal, essa pequena multidão desconhecida.

Ainda que essa facilidade seja talvez inevitável com o passar do tempo - desejável, claro, pois quem agüentaria passar a vida sofrendo de ansiedade, rubor e sudorese como se toda vez fosse a primeira -, de uma certa forma me fez sentir roubada da presença do autor. Que ilusão, achar que o artista iria se expor inteiro, diretamente, ingenuamente! Que a performance seria mais que uma missa de corpo presente...

A proximidade aparente que parece emanar dessa naturalidade é para mim o maior sinal da distância, ainda que eu tente me convencer de que minhas perguntas, de algum modo, poderiam cortar a fachada, desvelar, como eu queria. Ingênua sou eu, com meus pudores, em face de tanto profissionalismo...


Daniela Sandler
Rochester, 28/11/2001

 

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