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Segunda-feira, 12/4/2010 Kokoro, de Natsume Soseki Ricardo de Mattos Natsume Soseki "Ler um livro é para o bom leitor conhecer a pessoa e o modo de pensar de alguém que lhe é estranho. É procurar compreendê-lo e, sempre que possível, fazer dele um amigo." (Hermann Hesse) A boa literatura é aquela que se liberta do tempo e lugar onde foi gestada e veio à luz, para ganhar o alcance não imaginado pelo autor. Desnecessário justificar a leitura alegando que "apesar de escrita há tantos anos, ela ainda é atual". Implicamo-nos com isso, inclusive, pois o hábito de trazer tudo para o presente faz perder a sequência dos passos da humanidade e a situação do trabalho em sua época. O desafio é conhecer o livro em seu contexto para depois acompanhar sua "fuga". Dele tiram proveito leitores de outros tempos e tradições, proveito imediato ou não. Conheça-se obras diversas e forme-se um cabedal de cultura cujo valor revelar-se-á no instante exato, como visitar um local sabendo o que procurar, observar e lembrar, ou vivenciar experiências avisados quanto ao mínimo a extrair delas. Viva o leitor onívoro, pois por melhor que seja a comida, a repetição indefinida torna o paladar insensível. O escritor japonês Natsume Soseki ― nascido Kinnosuke ― é-nos apresentado como o mais relevante de sua época. Nascido em 1867 e desencarnado em 1916, vivenciou a totalidade do período Meiji. Até agora, recorreu-se a Machado de Assis como paralelo de apresentação ao público brasileiro, providência que questionamos. Parece recurso do senso comum aplicar à literatura a expressão "diga-me com quem andas que te direi quem és". Utilizar um escritor como muleta para entendimento do outro acaba prejudicando o recém-chegado. Ambos viveram a maior parte de suas vidas na segunda metade do século XIX. Machado de Assis testemunhou abolição dos escravos e o fim do Império. Soseki acompanhou mudanças extremas dentro do Império japonês. Não se deve ir muito adiante na questão, sob pena de ler-se Soseki como extensão de Machado e perder-se o melhor do extremo-oriental. Basta lembrar que Machado de Assis era católico romano, e até onde lembramo-nos, não é pela observação das mudanças nas tradições sociais e religiosas que se notabilizou. Soseki foi zen-budista, mantendo por si mesmo um intenso diálogo entre a literatura e a filosofia chinesas e as mesmas expressões do Japão. Conforme tentaremos salientar nesta coluna, é muito mais útil para a compreensão dos livros de Soseki o conhecimento d'O livro do chá, do também nipônico Kakuzo Okakura, que de qualquer outro escritor ocidental.
Era Meiji respeita ao período de governo do imperador Mutsuhito (1868-1912) e significa Era da Iluminação. Foi aquela em que se verificou e consolidou um período de profunda renovação econômica, social, industrial e cultural, por força da cobrança feita ao Japão pelos Estados Unidos para que saísse de seu isolamento e abrisse-se ao comércio internacional. O convite foi feito com a caraterística delicadeza ianque, através da invasão da baía de Uraga. Embora a força modificadora tenha sido externa, o Japão foi "preparado" para o mundo moderno, no qual se apresenta como potência econômica. O ponto negativo é que as mudanças, si necessárias, não foram pacíficas, gerando invasões na Coreia, Manchúria e Taiwan e guerras contra a China e a Rússia. "O ocidental comum se habituou a considerar o Japão como um país bárbaro enquanto este cultivou as suaves artes da paz, mas o classifica como civilizado desde que começou a perpetrar carnificina em massa nos campos de batalha da Manchúria", reclamou Okakura. Teve igualmente vez um amplo descontentamento interno, sendo o mais expressivo o dos samurais, que perderam seu status social de forma talvez impensada. Em lugares onde dá-se muita importância a símbolos de definição social, basta estendê-los a todos que o prestígio esvai-se. Portanto, como antes apenas os samurais podiam portar armas, a extensão do serviço militar obrigatório a todos os homens tornou imotivada a distinção em decorrência delas. Postumamente, Mutsuhito foi rebatizado como o nome do período, passando a ser referido como Imperador Meiji, o que não deixa de causar certa estranheza aos iniciantes. Na França, seria como deixar de chamar Louis XV pela referência numérica e chamá-lo "Louis Rococó".
Desde a infância o escritor teve acesso à literatura tradicional chinesa. Iniciou estudos da língua e literatura inglesa na Universidade Imperial, o que lhe facilitou a ida para a Inglaterra em 1900, como bolsista do Ministério da Educação. Tornando ao seu país, dedica-se à carreira de escritor, poeta e crítico literário. Como poeta, esmerou-se no cultivo de formas consideradas arcaicas como o haiku ― ou haicai. Mais que mero saudosismo, sua intenção era demonstrar a riqueza literária japonesa, protegendo-a da extinção. Notamos que o haiku foi depreciado na Era Meiji, mas hoje conta com sítios especializados na internet e até com comunidades do Orkut. O fato de Soseki conhecer o externo mas continuar valorizando o interno estabelece um diálogo intertemporal com a escritora haitiana contemporânea Edwidge Danticat. Em entrevista ao último caderno "Cultura" do jornal O Estado de São Paulo, publicado em sete de março, ela surpreende-se com alunos universitários que teve contato. "Temos aqui", diz ela, "a geração de imigrantes que não lê em creole nem em francês. Porém, quando encontro a garotada nas universidades, detecto tanto orgulho... (...) Os estudantes aprendem sobre outras culturas e dizem: 'Espere aí, de onde eu venho há muito o que reconhecer e celebrar'" (grifamos).
Neste ponto tornamos a chamar a atenção para O livro do chá. Quem o ler perceberá a sutileza que envolve o servir da bebida, seja no ritual específico, seja na hospitalidade do dia a dia. Sendo o professor e sua esposa oriundos da geração anterior à do personagem "Eu", é esperável que mesmo o cotidiano estivesse impregnado do cerimonial. A cerimônia realmente existe e é plena de detalhes e de carga filosófica embebida no taoísmo e no zen-budismo. A conversa do personagem com a mulher do professor, inofensiva na aparência, pode revelar-se um flerte. Lembremos que, além da mãe do protagonista, ela é a única a ser nomeada, o que revela uma elevação sutil no grau da atenção dispensada. O que pode ser entendido como Soseki querendo dizer que as mudanças sociais desencadearam mudanças comportamentais. Em momento algum fala-se escancaradamente em adultério, mas fica no ar a sutileza do mútuo e discreto entendimento. A mulher recebe maior atenção e passa a oferecer-lhe doces, bem como a lavar-lhos quimonos. O leitor da época talvez pensasse indignado: por que o personagem não se encarrega ele mesmo de lavar seus quimonos? Ricardo de Mattos |
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