|
Segunda-feira, 24/5/2010 Cartola Ricardo de Mattos LIANA TIMM© (http://timm.art.br/) "Nascido no Catete, sua grande experiência humana se desenvolveu no Morro da Mangueira, mas hoje ele é aceito como valor cultural brasileiro, representativo do que há de melhor e mais autêntico na música popular." (Carlos Drummond de Andrade) Partimos do princípio de que a boa música é universal e que a distinção em estilos tem apenas a função prática de agrupar os semelhantes. Quanto aos compositores, a providência salienta os melhores e justifica-lhes a proeminência, pois podemos avaliar o alcançado por eles em sua época e local, dispondo eles dos recursos que dispuseram. Aqui reforça-se a corrente antropológica que relativiza o gênio e realça a importância do meio. Por este ângulo, o temperamento de Beethoven talvez não se adequasse à New Orleans do século XX e por isso não frutificasse tal como frutificou no que constituía a Alemanha do século XIX. Ou, fosse igualmente bem-sucedido, daria um novo enfoque para a discussão sobre o que é ser gênio, assunto que já foi pauta especial do Digestivo Cultural. De qualquer forma, quer a genialidade dependa do meio para manifestar-se, quer a genialidade supere o meio ― conforme entendemos ―, o certo é que este predicado não pode ser negado a Angenor de Oliveira, o Cartola. Angenor nasceu em meio simples, quando morar em favela significava morar em periferia, não em meio onde as pessoas precisam ser lembradas com urgência da dignidade humana que lhes é inerente. Pobre e mal instruído, sua carreira musical "torna feia" a situação dos atuais divulgadores de ruídos e de modismos flutuantes. Cartola compensou sua má formação escolar com a leitura de grandes nomes da poesia nacional e portuguesa: Castro Alves, Gonçalves Dias e Guerra Junqueiro. Suas composições provam que, si com eles compartilhou a inspiração, seu estro colheu na realidade próxima os elementos integrantes de sua poética. Enfim, a poesia já estava no olhar que lançou ao mundo. Olhar bonito, que transformou repreensão em peça clássica ― "O mundo é um moinho". Compor, muito compôs, a ponto de esquecer de suas próprias músicas e surpreender-se com a atribuição da autoria. Cada uma, bem arranjada e interpretada, amacia a alma no preparo de melhores sentimentos. "Ah, mas Cartola sofre a barreira do idioma". Temos certeza que não. Inumeráveis pessoas sensibilizam-se com a Nona Sinfonia de Beethoven, sequer sabendo quem foi Schiller. Pessoalmente, colocamos "As rosas não falam", "Sing, sing, sing" ― de Benny Goodman ― e a Quinta Sinfonia de Beethoven no mesmo patamar junto com diversas outras que não teríamos coragem de organizar de forma hierárquica. A leitura de Cartola ― Semente de amor sei que sou, desde nascença (SescSP, 2008, 118 págs.), de Arley Pereira, ajudou-nos a organizar nossas reflexões a respeito da música dita "popular" e aproveitamos a ocasião de lançamento gradual de uma coleção de CDs por um jornal para conhecer e reconhecer composições que deveriam retomar posição legítima tanto no rádio quanto no MP3, deslocando a escória invasora. "São pessoas de outra época e gosto", retrucam, "não teriam apelo junto ao público de hoje". Certa colega de classe, com a metade de nossa idade, explicou-nos mui propriamente porque Cartola fez-se moleiro. Enquanto escrevemos, um carro para no semáforo sob nossa janela e as caixas de som, próprias para sacudir um estádio, expelem uma batida acompanhada exclusivamente das seguintes palavras: "vai descendo, vai descendo, vai descendo...". O livro de Arley Pereira é depoimento afetivo do amigo próximo. Traz alguma documentação, fotos, imagens das capas dos cinco discos de Cartola, amostra de letras de músicas escritas em papel timbrado do Ministério da Indústria e do Comércio, onde o músico trabalhou como contínuo. Observamos que, provavelmente, muitas das pessoas que foram servidas de café sequer dirigiram um "obrigado" ao contínuo de compleição de passarinho. O livro segue a linha cronológica, mas sem o porte e o alto grau de pesquisa e investigação que caracterizam obras de maior fôlego, como a excelente biografia que Celso Campos Júnior escreveu de Adoniran Barbosa. Afastadas as polêmicas oriundas das avaliações pessoais, é no mínimo interessante notar o diálogo entre grandes expressões da música brasileira do século XX. Cartola e Noel Rosa foram companheiros de violão, de copo e de borracheira. Ambos precisaram ser levados do botequim para casa por Deolinda ― companheira do primeiro antes de Euzébia Silva, a conhecida Dona Zica ― banhados e asseados com talco "nas partes". Amizade estreita que levou Rosa a abrir mão em favor do amigo de direitos autorais pela música "Qual foi o mal que eu te fiz". Quem os adquiriu foi Francisco Alves, um dos grandes cantores da época. Encarregado de apresentar a nata de nossa música ao maestro Leopold Stokowski, no episódio do navio Uruguai, Heitor Villa-Lobos elegeu Cartola como notável representante da música popular. Encantado com a obra do sambista, o compositor erudito Radamés Gnatalli encarregou-se dos arranjos musicais na gravação do disco Autonomia, reservando para si o piano, instrumento para o qual deixou excelentes concertos. Sérgio Porto e Carlos Drummond de Andrade usaram da palavra para expressar a admiração pelo poeta mangueirense. Agradável surpresa teve lugar quando o temido crítico José Ramos Tinhorão ― temido porque afirma e fundamenta ― publicou um texto elogioso por ocasião do lançamento do disco Cartola, em 1974, qualificando-o como "um dos poucos verdadeiros gênios da música popular brasileira". Os dados biográficos sobre Angenor de Oliveira são poucos e repetem-se nas fontes. Este fato, aliado ao seu reconhecimento tardio, desvia a atenção de sua vida particular e concentra-a na sua incomparável obra. Para ir além Ricardo de Mattos |
|
|