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Terça-feira, 4/12/2001
Frank Miller vem aí, o bicho vai pegar
Rafael Lima

A notícia fala por si própria: amanhã, dia 5, está prevista a chegada nas lojas do primeiro capítulo da mini-série The Dark Knight Strikes Back, a continuação de The Dark Knight Returns (O Cavaleiro das Trevas), totalmente escrita e desenhada por Frank Miller. Qualquer um que tenha lido o que saiu em quadrinhos nos últimos dez anos, pelo menos já ouviu falar no Cavaleiro das Trevas. Aos que moravam em outro planeta, essa coluna pode ajudar em alguma coisa.

Desde que começaram a aparecer nos EUA do final da década de 30, como uma estilização dos personagens da pulp fiction - Doc Savage, o "homem de bronze"; O Sombra - os super-heróis passaram por poucas e boas. De sub-sub-subliteratura (se pulp fiction já era considerada baixaria entre os bem letrados, até por ser impressa em papel mais barato, restos de polpa de árvore - daí o nome - imagine só o que não diziam das histórias em quadrinhos, pulp fiction feita para adolescentes) à respeitabilidade das críticas em suplementos literários de domingo dos grandes jornais, foi uma escalada tumultuada e incompreendida - sobre a qual já andei escrevendo - que não cansava de se olhar no espelho e se perguntar o que via.

Alan Moore sacou isso: desde a Era de Ouro, todos os super-heróis que surgiram foram reinterpretações, descontruções ou análises dos heróis originais. Mesmo dentro da Era de Ouro, pode-se dizer que todos os protagonistas (Átomo, Flash, Capitão Marvel, até a Mulher Maravilha) eram variações do Super-Homem, o primeiro, mais perfeito e maior de todos os super-heróis. Além de caber perfeitamente nos moldes do mito, ainda encarnava a pujança da modernidade, um símbolo para o american way of life. É tremendamente curioso que o primeiro protagonista da Era de Ouro baseado nele tenha sido quase um reverso no baralho, uma assustadora criatura das sombras, um ser cavernoso que beirava o crime em suas ações. Batman.

Em meados da década de 80 as revistas dos principais personagens da DC Comics, editora de Super-Homem e Batman, não faziam muito sucesso. Para se ter uma idéia do baixo astral, quem arrastava o público para as convenções era o gibi do Monstro do Pântano. À beira dos 50 anos, nem o anel do Lanterna Verde parecia capaz de fazer o público enxergar o potencial daqueles símbolos tão esvaziados. Foi uma tentativa desesperada de resgatar os significados perdidos que fez a DC entregar de mão beijada seu panteão, a essa altura mundialmente influentes (do carnaval recifense ao interior da Noruega é possível encontrar crianças fantasiadas de Super-Homem), a jovens autores em ascensão. Com carta branca, a equipe responsável pelo Demolidor, estrondoso sucesso da concorrente Marvel, Frank Miller-Klaus Janson, e mais a colorista Lynn Varley, foi convocado para trabalhar com o Batman.

Cavaleiro das Trevas - Capa O Cavaleiro das Trevas pegou todo mundo de calça curta em 1986. Foi revolucionário sob diversos aspectos. Era uma mini-série em quatro capítulos, formato ainda incomum; impressa em luxuoso papel baxter, para melhor reproduzir o colorido especial de Lynn Varley, enfim, tinha cuidados ainda muito raros em se tratando de gibis de super-heróis naqueles dias. Aqui no Brasil, lançada no ano seguinte, foi a primeira revista de super-heróis em formato americano e impressão bem cuidada a chegar nas bancas tupiniquins. No interior, Frank Miller mostraria que não tinha medo de jogar em time grande.

Sua primeira providência foi dividir a página simetricamente em 16 quadros, não por acaso a mesma malha básica utilizada em Watchmen, conferia unidade visual e grande versatilidade na diagramação. A segunda foi retalhar a página em longos quadros horizontais ou verticais, como já havia feito no Demolidor, dando muito dinamismo às cenas de ação. Além de truques de câmera cinematográficos, criando um punhado de seqüências de grande impacto dramático, Miller achou espaço para espalhar algumas splash pages (páginas ocupadas por uma imagem só) ao longo da história, para homenagear seu mestre Jack Kirby. Utilizou novamente a narrativa em primeira pessoa, em off, como numa novela policial noir, e colocou vários coadjuvantes para impulsionarem a história, quebrando a narrativa. Mas foi ao manipular conceitos que o Cavaleiro das Trevas mostrou a que tinha vindo.

A história é situada em "algum lugar do futuro", quando a televisão é descaradamente sensacionalista, a insegurança domina as ruas de Gotham City, assoladas por gangues adolescentes ultra-violentas e o péssimo clima da iminência de uma guerra nuclear com a União Soviética é palpável nos cartazes "O Fim está proximo". O presidente norte-americano é uma caricatura de Reagan, e governa com aquele mesmo estilo caubói de filme B. Batman está fora de cena há 10 anos, aposentado compulsoriamente por seu alter ego, Bruce Wayne, depois de um decreto presidencial que baniu o vigilantismo dos super-heróis. Cercado de motivos por todos os lados, Wayne quebra o voto de silêncio e resolve voltar (triunfalmente?) à ação. Ao contrário do que se poderia imaginar, não é bem recebido pela mídia, ainda mais depois do reaparecimento do Duas Caras e do Curinga.

Não há nenhum quadrinho, e também nenhum filme que sintetize e transmita tão bem aquele momento político norte-americano como The Dark Knight Returns. Seu impacto foi imenso não porque nunca tinham se feito histórias em quadrinhos de conteúdo adulto, mas porque era a primeira história adulta com super-heróis - e logo com um ídolo das crianças. Lembro que na época saiu uma reportagem com essa comparação: O Cavaleiro de Miller é o Blade Runner de Batman. Tinha que se buscar símiles no cinema, porque inexistiam nas Hqs; porém, apenas essa história foi capaz de inverter o fluxo: se você achou sua ambientação familiar, semelhante a algum filme que viu há muito tempo atrás, agora já pode saber de onde RoboCop chupou suas melhores idéias. É só procurar o nome de Frank Miller nos créditos do roteiro das duas continuações. Em 1989 veio Batman, o filme, que mesmo embalado para o mercado ainda trouxe muito da arquitetura gótica, do clima sombrio e do jeito caladão do morcego-humano. O Batman de Dark Knight é alguém atormentado pela morte dos pais e assombrado por um morcego que invadiu seu quarto quando criança; é carrancudo, violento ao nível do sadismo, curto e grosso - e ainda faz humor negro. A encadernação dos quatro capítulos foi uma das primeiras histórias em quadrinhos a invadir as livrarias, como graphic novel.

Batman e Catgirl Quinze anos depois, uma continuação, ainda que pelos mesmos criadores, poderia soar como um simples golpe de vendas. No entanto, é mais razoável supor que o motivo seja o mesmo de quinze anos atrás: o gênero dos super-heróis está esgotado. A rigor, o conjunto de hoje é ainda mais aterrador, por conta da infinidade de imitações baratas no vácuo do Cavaleiro, uma penca de heróis de capa esvoaçante, extremamente violentos, mau encarados, incapazes de articular pensamentos em mais de 3 linhas - ou seja, caricaturas do Batman, sem um pingo de sua motivação. Frank Miller já não mexia com super-heróis há um bom tempo, já tinha feito a história para a qual nascera (Sin City), portanto, poderia se considerar alguém realizado e dar tudo de si: "Se eu vou fazer uma HQ de super-heróis, tem que ser em grande estilo", disse. "As coisas estão lúgubres demais. Os heróis ficaram tão feios que até seus músculos têm músculos. A elegância de Gil Kane desapareceu. Não se vê mais o regozijo absoluto do anel energético do Lanterna Verde ou a magia do Flash, que se move tão rápido que ninguém o vê".

Um bom motivo - o melhor, a meu ver - para se comprar correndo é que, exceção feita à graphic novel Elektra Vive, é a primeira vez que Miller volta a desenhar super-heróis com seu próprio punho há 20 anos: quem conhecia a dupla Miller-Janson dos tempos de Demolidor sabia que o trabalho de Klaus na arte-final sempre fora muito mais do que apenas "cobrir de tinta os traços do desenhista"; há algum tempo Frank só fazia a diagramação das páginas e o lay out dos quadros. No duro, foi Klaus Janson quem desenhou o Cavaleiro das Trevas. Como a DC Comics cometeu a mesma insanidade de dar liberdade completa de mexer com os personagens clássicos, inclusive licença para matar, Miller resolveu fazer o jogo sujo sozinho dessa vez, sem Janson. E mais uma vez o jovem gênio não se fez de rogado e prometeu sacudir o barraco.

Se a primeira série era um excelente retrato da era Reagan, Guerra Fria, agora, após os politicamente corretos anos Clinton, prosperidade econômica e a chance de um avião cair na sua cabeça a qualquer momento, não será diferente. Miller sabe que o inimigo pode vir de qualquer canto, e prometeu comentar o atentado ao World Trade Center. A história se passa 3 anos depois do término da primeira, num mundo risonho porém não franco, onde as circunstâncias fazem Batman mais uma vez intervir - e, dessa vez, ele vai ao encontro dos super-heróis banidos. Saber o que aconteceu com cada um deles será um dos grandes atrativos da história, porque foi convocado praticamente todo o dream team da DC. Os super-heróis simbolizarão posições políticas: mais uma vez, o Super-Homem será a direita, o defensor do sistema, enquanto Oliver Queen, o Arqueiro Verde, que aparece com um braço amputado no quarto capítulo da primeira série (atenção para a sutileza: um arqueiro de braço amputado), será a extrema esquerda. O Batman? Desfilará com as cores da anarquia.

Um hot site foi colocado no ar para ir esquentando os tamborins, e apesar de já gastarem alguns bits para colocar à venda uma estatueta promocional, é possível ver a capa, sketches originais, páginas finalizadas, um resumo do argumento e até assistir uma animação feita para instigar o leitor. Quem nunca ouviu falar pode querer correr atrás, e essa história deve ser um ótimo exemplo para mostrar que história em quadrinhos, até as de super-herói, também pode ser séria, inteligente, profunda, para quem nunca leu. E quem já leu, bom, quem já leu provavelmente largou esse texto no fim do primeiro parágrafo e foi correndo atrás do seu.

The Dark Knight Strikes Again :: DC Comics, Frank Miller & Lynn Varley, em três partes, 80 páginas cada.

Rafael Lima
Rio de Janeiro, 4/12/2001

 

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