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Sexta-feira, 2/7/2010
Livrarias, bibliotecas e outros paraísos
Ana Elisa Ribeiro


LIANA TIMM© (http://timm.art.br/)

O primeiro passeio por uma livraria já vai longe. Na verdade, nem me lembro dele, sequer vagamente. Talvez tenha vindo tarde, já em meados da adolescência, quando algum dinheiro sobrava dos lanches não comprados na escola. Assim, forçando a memória, me vem uma livraria Siciliano de um shopping, então recém-inaugurado, no centro da cidade de Belo Horizonte. Uma Siciliano pela qual nutri imenso carinho ao longo de vários anos. Uma livraria que cobicei, com a qual sonhei e que me ajudou a encorpar a estante de livros de poesia contemporânea que ostento até hoje, no hall dos quartos, em minha casa.

Na infância ou pouco depois, não me lembro de passeios por corredores e prateleiras em livrarias da cidade. Não era um passeio promovido nem por pais, nem por tios, nem padrinhos ou amigos. Se bobeasse mais um pouco, era o tipo de turnê que ninguém desejava fazer. Talvez nem eu mesma, antes, diante da falta de quem me apresentasse essa espécie de flanérie.

Lembro, isso sim, dos passeios pelas bibliotecas públicas. A ideia geral (e aprendida em casa) era a de que livros são emprestados. Não havia razão para se comprá-los ou para mantê-los em cárcere privado. Algo assim norteava a ideia de que se deveria ser sócio de uma biblioteca pública. Em algum momento, fui obrigada, então, a fazer uma carteirinha da biblioteca (parca e feia) do bairro ao lado. Um prédio escuro, no fundo de uma escola pública, era, então, o abrigo de uns livros poucos e mal-conservados. Tenho cá, até hoje, esse cartão de papel, com uma foto três por quatro impublicável, que me dava direito a alguns empréstimos de livros, com restrições normais de instituições de empréstimo. Havia lá umas regras de uso e umas datas de devolução. O carimbo torto entre as linhas do cartão dá prova dos livros que achei e que peguei naquela filial da biblioteca pública estadual.

Também lembro bem da biblioteca da escola, colégio municipal à época disputado e prestigioso, em que cumpri a maior parte dos meus anos de formação básica. Mais uma vez, tratava-se de um lugar escuro, mais precisamente uma espécie de porão, em que ficavam (mais armazenados do que à disposição) os livros que li na adolescência, pela altura da antiga oitava série. Foi ali que descobri coisa muito importante, como a leitura de Paulo Leminski, por exemplo. Ou foi ali que conheci Carlos Herculano Lopes e, junto com ele, que muitos escritores ainda estavam vivos, bem vivos.

Naquela onda de empréstimos, que acho que incomodavam um pouco a simpática bibliotecária, li livros que "caíram no vestibular" (não o meu, mas o dos outros todos mais velhos do que eu) e os que não caíram em lugar nenhum. Vez ou outra, a moça da biblioteca, baixinha, de nariz longo e adunco, perguntava, com o olhar de fato intrigado, o que eu fazia ali enquanto os demais adolescentes estavam no recreio. Eu não me lembro de nenhuma resposta que dei à insistente pergunta dela.

Ali, naqueles escuros e apertados corredores, descobri mais ainda do que Herculano, mitologias e livros de vestibular. Junto com a leitura de Leminski, descobri o que era desejar livros. Eu queria tê-los. Não queria ter de devolvê-los. Não queria mais ter prazos (curtos ou dilatados). Não queria mais regulações. Nem mesmo queria mais conter meu impulso de escrever nas margens.

Dos dinheiros de lanche não-gastos e desse desejo de posse, meio egoísta, eu sei, mas muito muito cuidadoso, aprendi o caminho da Siciliano e comecei minha coleção de poesia contemporânea, inaugurando-a, claro, com algo da obra do poeta curitibano. Depois dele, outros e outros e outros, mineiros, paulistas, gaúchos, nordestinos, brasilienses, cariocas, mortos, suicidas, vivos, bebuns, bons e maus.

Aí começava a trilha pelas livrarias, um outro espaço, também de livros, mas agora mais claro, mais amplo, mais habitado do que os anteriores. A despeito dessa arquitetura que, em geral, propunha o consumo, a estante de poesia estava lá, mais ao fundo, embaixo, empoeirada, em lugar de difícil acesso. Agachada, apertada em um canto, eu procurava uns nomes, umas capas e umas surpresas. Ia sozinha e, de vez em quando, encontrava, pela vida adentro, uns amigos que me acompanhavam sem me importunar, permitindo que eu gastasse horas e horas na colheita dos meus títulos.

Da Siciliano parti para as livrarias da Fernandes Tourinho, uma rua de Belo Horizonte que cultivava uma série (infelizmente finita) de livrarias interessantes. Naquela época, descobri a Scriptum, que está até hoje plantada no mesmo solo. Nas estantes de poesia, mais visíveis e maiores, descobri muitos poetas de hoje, muitos autores mineiros, muita conversa literária. Comprei muita coisa, enchi minha estante de surpresas atuais, atualíssimas e mesmo recém-lançadas.

O desejo de ter livros crescia. Tornava-se uma mania, febre dessas como a de figurinhas ou a de colecionar tampinhas. Febre de querer mais uma novidade para a coleção de leituras, não apenas de obras secas paradas na estante de casa. Não era apenas um ímpeto de ter, mas um outro de conhecer, de ler, de saber, de procurar, de experimentar, de lidar, de analisar. Uns livros que me deixavam perplexa por uns tempos. Outros que me causavam certo arrependimento de não ter comido mais pães de queijo na escola.

Livros proliferam. A casa é violada, mas os ladrões não levam. Os moços da mudança xingam. Livros pesam. Livros são bens físicos, mas não são só isso. Livros lidos são como aquela história da chama da vela: você acende a vela dos outros e a sua luz continua com você (li isso em alguns contextos diferentes). Livros lidos são inexplicavelmente virtuais. E minhas estantes foram ficando pequenas, pequeninas, pequetitas e tive de comprar mais delas, procurar lojas que soubessem vender estantes para livros, especificamente para eles. Não estantes frágeis, ornamentais, para um ou outro exemplar decorativo. Precisei de estantes robustas, de prateleiras estreitas e firmes, calculadamente espaçadas para aguentar o peso do papel.

Atualmente, são duas no hall dos quartos e sete no escritório. Os livros estão em fila dupla em todos os lugares e já tomaram a mesa central e parte do meu espaço de trabalho. São muitos, variados, de diversos jeitos e cores. Os temas se ampliaram, se refinaram e já tenho problemas de busca. Vez ou outra, alguém pergunta se já li tudo. Não, claro que não, mas estimo que em mais duas vidas eles estejam todos lidos. Mas haverá outros e outros que terei comprado. É uma angústia. E mais: alguns livros não são de ler inteiros, mas de consultar, de espiar, de ler ao longo dos anos, de juntar com a coleção e deixar para depois. Os livros são desejados, comprados e habitam a casa, como as pessoas, só que eles costumam durar mais do que elas.

Nessa caminhada de desejos de livros, tive de importar alguns, porque a cidade e suas livrarias haviam ficado pequenas e insuficientes. A web e suas livrarias infinitas me ajudaram a compor mais partes do meu arsenal. E quando vou a São Paulo, a Campinas, a Porto Alegre ou a Lisboa, onde quer que seja, separo um dia inteiro, senão mais, apenas para me dedicar às grandes livrarias. E sempre estimo, ao montar as malas, quantos livros deverão voltar nelas quando eu estiver de retorno. E sempre as malas vêm mais pesadas do que foram. E minha perdição, minha salvação e minha mágoa andam juntas: por que Belo Horizonte não tem uma grande livraria de verdade, como outras cidades têm? Será que falta quem tenha desejos como os meus?

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 2/7/2010

 

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