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Sexta-feira, 23/7/2010
Arte e liberdade
Diogo Salles

Certa vez, aqui mesmo, no Digestivo, falei sobre o trabalho social do qual faço parte. Expliquei qual é o conceito de solidariedade em pessoas que acreditam, movidas pelo desejo verdadeiro de ajudar outras pessoas. E fico feliz de ter feito parte dos anos iniciais dessa ação, onde o orçamento era sempre apertado e tínhamos de renunciar a muita coisa para estar lá. É impressionante quanta coisa boa se pode fazer pelas pessoas, navegando totalmente à margem dos rios de dinheiro que os governos despejam em ONGs de fachada.

Antes de participar ativamente das ações, trabalhei nos bastidores, atualizando os diários de bordo e produzindo ilustrações para a Expedição 2000, do projeto Trilhabrasil, o marco zero das diversas ações sociais hoje produzidas pelo Instituto Brasil Solidário. Nos dois anos seguintes, continuei atualizando os diários de bordo, seguindo o rastro do Trilhabrasil no Rally dos Sertões. Em 2003, era hora de colocar a mão na massa. Distribuição de cestas básicas, kits escolares, kits de escovação, bibliotecas... Era a primeira Ação Social oficial do Rally dos Sertões. A partir de 2004, chegaram as oficinas, que foram se multiplicando ao longo dos anos. "Aprenda com o olhar deles", foi o que me disse o Maia (o meu mestre), quando lhe contei que eu estava criando uma Oficina de Desenho. Mais tarde a oficina se desmembrou e criei um curso livre para jovens promissores do traço, trabalho que durou até 2006. Quando a grande oportunidade da minha vida profissional finalmente chegou, fui correr atrás do meu sonho e tive de deixar o trabalho social para trás. São escolhas ― e fiz a minha, com dor no coração. A vida seguiu e, três anos depois, em 2009, recebi uma intimação para comparecer urgentemente a Cabaceiras (PB)...

Cabaceiras, que nome pitoresco. A primeira vez que ouvi falar, estranhei. Quando soube que ali era uma espécie de templo de jovens artistas que despontavam no sertão paraibano, me senti curioso e desafiado. E lá estava eu de volta às oficinas, levando técnicas de desenho a essa molecada que gosta de fazer arte. Antes de seguir viagem, me lembrei da profética frase do Maia (sobre o "olhar"). Em minha palestra, fiz uma longa apresentação em datashow de trabalhos de artistas dos mais variados matizes para aguçar a curiosidade de meus dez alunos. Mostrei um pouco de tudo relacionado à arte gráfica: HQs, heróis, caricatura, tira de humor, charge, cartum... Sempre contextualizando com citações históricas, traçando um perfil do autor e exemplificando os aspectos técnicos do desenho, como luz e sombra, volume, arte final, etc. Enquanto eu falava, reparei bem na expressão de cada um dos meus alunos, que pareciam borbulhar de tanta curiosidade, pareciam buscar respostas para todas as suas inquietações. Eram os tais "olhares". E eu estava ali, vendo tudo de fora, como se olhasse em retrospecto para mim mesmo. Era como olhar para aquele garoto tímido e avoado que fui, sempre imaginando histórias "fantásticas"... E desenhando-as.

Logo que comecei a oficina, uma coisa me incomodava. Percebi que meus alunos enxergavam os livros da mesma maneira que eu lá atrás: uma coisa chata, para fins meramente didáticos. Sempre penso o que teria acontecido se os livros tivessem chegado a mim de uma forma mais agradável (teria mudado minha percepção sobre muitas coisas). Felizmente, os tempos são outros e, buscando desconstruir essa visão, levei-os para uma longa e acurada pesquisa na novíssima biblioteca doada pelo IBS. Pesquisamos os mais variados tipos de livros, com atenção especial aos ilustrados e explicando como funcionava o mercado editorial. É nos livros que os artistas iniciantes sempre encontram as primeiras inspirações. Tomei o cuidado para não transformar aquilo numa imposição (ou numa "coisa chata"). A intenção era instigá-los, pois eu sempre soube que, nessa idade, a cópia é uma coisa natural. O resultado foi imediato: cada um vai pesquisar sozinho os assuntos e livros de seu interesse. No fim, todos voltaram da biblioteca com pelos menos um livro debaixo do braço e já começaram suas "cópias". Descobriram que, além da leitura, existia o trabalho de observação, que define o estilo de um artista. Também fiz as minhas cópias lá no início e sei o quanto essas referências são importantes. É através dessa observação que o artista coloca sua visão no papel. Bem vindos ao mundo da linguagem visual e da arte gráfica.

Outra ideia fixa que detectei era um estranho senso de competição entre eles. Não que a competição seja ruim, mas ali era exagerada. Os gêmeos Fabio Moon e Gabriel Bá, em entrevista ao Roda Viva, explicaram como era a competição entre eles, sempre com um desafiando o outro a melhorar. Esse é o exemplo de competição saudável, mas não era o que acontecia em Cabaceiras. Não havia ali o desejo de desenhar melhor, mas sim o de apenas vencer os concursos que eram feitos periodicamente. Acontece que uma obra de arte é autoral e não cabe em comparações com outras. Nos Salões de Humor, por exemplo, existe uma separação por categorias, com charge, cartum, quadrinhos e caricatura. Nos concursos da escola em Cabaceiras tudo era colocado numa categoria só. Como comparar uma HQ de mangá com uma natureza morta? O resultado era que os meninos eram jogados à sorte de conceitos totalmente subjetivos e das idiossincrasias da comissão julgadora, desvirtuando o conceito de "vitória" ― ou, pior ainda, de "derrota".

A competição pode ser importante em outras áreas, mas na arte ela tem outro sentido, bem menos importante. Uma eventual premiação deve surgir como consequência, e não como objetivo principal. Baseado na minha própria experiência, resolvi transformar esse senso de competição em senso de colaboração ― porque é assim que acontece com os ilustradores que trabalham comigo lá na redação do Estadão. Trocar informações, opiniões, livros e materiais é essencial para que o artista não se feche em seu próprio mundinho. É importante ter uma visão mais arejada e expandir seus próprios conceitos. Ao contrário do que muita gente pensa, opiniões variadas (e divergentes) são extremamente saudáveis numa sociedade. Mais importante ainda é ouvir críticas e saber aceitá-las. E se essas críticas vierem de algum profissional da área ou de alguém credenciado a fazê-las, guarde-as com chave de ouro, pois o caminho que você está procurando pode estar exatamente ali.

Alguns podem achar que esta é uma visão meio romântica (ou purista) da coisa toda, mas, para mim, a arte só atinge as pessoas se ela conseguir transmitir sentimentos verdadeiros. Arte tem de ser livre... Livre de preconceitos, livre de ideias pré-moldadas e ultrapassadas, livre de regras impostas pela sociedade, livre de dogmas religiosos, livre de ideologias políticas. Pelo menos foi isso que vi em todos os grandes artistas que admiro e que me serviram de inspiração lá no início. Todos eles, sem exceção, traziam a contestação em seu trabalho ― por mais diferentes que fossem. Gênios que, cada um à sua maneira, encontraram sua própria linguagem e souberam transportar sua visão de mundo para o papel. É disso que é feito o grande artista. Claro que alguns são mais reconhecidos, outros conseguem aplicar um "valor de mercado" em sua arte, mas, no fim, cada um tem o seu valor. A arte está dentro de cada um ― só que é preciso ir buscá-la, onde quer que esteja. E, antes de entregar para cada aluno quinze itens ― entre HQs, livros e gibis ― que comprei (ou retirei de minha coleção), a lição final: a única competição deles, a partir daquele dia, seria com eles mesmos.

Junior: um talento a ser lapidado
Um dos principais motivos da minha viagem à Paraíba tinha um nome: Edinaldo Laurentino Junior. Quando me disseram do que esse moleque era capaz com um papel e lápis nas mãos, não duvidei, pois sempre tive a consciência de que o talento nato existe. E era o caso do Junior ― como ele gosta de ser chamado. Quadrinhos, ilustração, heróis, cartum, ele transitava com desenvoltura por diversas linguagens. Sabendo das dificuldades de se encontrar o material adequado no meio do sertão paraibano, procurei ir munido de canetas especiais, blocos, lápis de cor, etc. Junior já era um artista formado. Ideias criativas, traços confiantes, cores vivas, grande noção de luz e sombra, volume e perspectiva.

Mas meu trabalho se mostraria um pouco mais complexo do que uma mera aula técnica. O problema dele era outro: a rebeldia. Já demonstrando o ar blasé, meio preguiçoso e "bon vivant" dos artistas mais boêmios, ele demonstrava displicência e pouca obstinação. Os desenhos, quase todos eles, eram deixados pela metade, permanecendo inacabados. Junior se desapegava deles muito antes da arte final. Nas histórias em quadrinhos, suas tramas esbarravam em uma linguagem hermética e com erros primários de português. Não havia outra coisa a fazer. Eu precisava tirá-lo de sua zona de conforto: "como você quer escrever um roteiro de HQ se você nem ao menos sabe escrever uma redação?". Aos 15 anos, com quatro repetências na escola e ainda cursando a sexta série do ensino fundamental, procurei passar a ele o valor do estudo e do esforço intelectual para a carreira de um artista. Expliquei a ele que existem centenas de artistas talentosos por aí, mas só alguns estão nos grandes circuitos internacionais, recebendo prêmios e tendo seus trabalhos reconhecidos. Procurei não soar moralista, mas sabia que alguém, algum dia, teria de confrontá-lo com essa realidade, por mais inconveniente que fosse.

O talento ele sempre teve e o material ele agora tinha. O que faltava era aquela teimosia, típica de artista, de querer viver exclusivamente de sua arte. Isso é uma decisão pessoal de cada um, e não poderia forçá-lo a nada. Mas espero que eu o tenha influenciado de alguma forma. Se ele aparecer como um dos grandes nomes da HQ no futuro, para mim, não será surpresa. A lição final da oficina valeu especialmente para ele: agora a competição do Júnior é contra ele mesmo.

Nota do editor
Trechos dessa coluna estão no livro Caminhos de um Brasil solidário.

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Diogo Salles
São Paulo, 23/7/2010

 

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