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Terça-feira, 3/8/2010 A sombra de Saramago Wellington Machado Não vou falar dos romances históricos da primeira fase da obra de José Saramago (1922-2010). Os críticos já os incensaram devidamente. Vou me ater aos livros chamados ideológicos do escritor ― prefiro chamá-los de romances ensaísticos. Aliás, essa coisa de ideologização geralmente não dá uma boa história. Vários escritores que tentaram se envolver com política ― ou com governantes ― tiveram suas imagens arranhadas. Não são bons de escolha. Só pra citar de memória, não foram boas as incursões políticas de Sartre, Gabriel García Márquez, Céline, Günter Grass, Heidegger, Brecht, Ezra Pound e José Saramago. Esquerdistas e direitistas à parte, o interessante é que o valor das obras desses escritores não decai, principalmente quando elas são usadas para ilustrar teses ou teorias, nos mais diversos campos do saber ― filosofia, sociologia, psicologia etc. George Orwell, por exemplo, ganhou notoriedade com sua obra 1984, onde o personagem-símbolo do livro, o Grande Irmão ― uma criação do governo totalitário para amedrontar e intimidar a população ―, monitorava as pessoas 24 horas por dia, através de uma espécie de TV, chamada "Teletela". Os olhos ameaçadores do Grande Irmão, espalhados por todos os locais públicos e privados, serviram de base, nos últimos anos, para a criação de programetes de TV, onde a grande massa de telespectadores fazem as funções do ditador. A obra-prima de Orwell também é incansavelmente citada quando se analisa a nossa perda de privacidade, principalmente pós-11 de setembro. Haja vista a quantidade de câmeras espalhadas pelas cidades, nos elevadores, portarias, lugares públicos e privados. Vivemos uma espécie de totalitarismo consentido, nos moldes do 1984. No romance Fahrenheit 451, de Ray Bradbury ― brilhantemente filmado por François Truffaut ―, o governo tenta extinguir os livros. Os bombeiros não apagam incêndios, mas incineram livros. Quem tivesse livros em casa era visto como um conspirador. A obra de Bradbury é constantemente lembrado quando se quer abordar a manipulação intelectual das massas ou os efeitos deletérios dos programas bobos de televisão. A fase ensaística do escritor José Saramago oferece também, a meu ver, uma série de possibilidades ilustrativas, alegorias e metáforas contemporâneas, que, assim como Orwell, Bradbury ou Aldous Huxley, servem muito para pensar o mundo e a época em que estamos inseridos. Após a obra-prima O Evangelho segundo Jesus Cristo, que interrompeu a fase histórica de Saramago, surge em 1995 o Ensaio sobre a cegueira. Considero esta, juntamente com A Caverna (2000), os ápices da literatura alegórica do escritor. Mas as outras não são desprezíveis. A obra Ensaio sobre a cegueira abre um precedente para inúmeras interpretações metafóricas. É uma obra aberta a especulações, tais como os motivos que levaram o escrivão Bartleby (de Herman Melville) a dizer "prefiro não fazer", toda vez que recebia uma ordem na repartição onde trabalhava. A cegueira branca que acomete a população daquela cidade imaginada por Saramago tanto pode ser a falta de um horizonte, um chão firme para as pessoas nesse mosaico de possibilidades ― ou impossibilidades ― que se nos apresenta a contemporaneidade, como pode ser também uma metáfora de um governo ditatorial que dizima brancamente sua população. Mas cabe também um outro enfoque. A obra pode ser analisada a partir da convivência daquelas pessoas dentro daquele galpão, onde são aprisionadas. A falta de alguém para organizar o ambiente faz com que cada um aja como bem entender, defendendo seus interesses individuais. O que seria de uma sociedade sem governo e sem leis? Ensaio sobre a cegueira é uma retratação fiel do "homem que é o lobo do homem", de Thomas Hobbes: pessoas brigando, matando-se por comida, estupro etc. O livro mostra as consequências de uma sociedade sem leis e um Estado omisso. Já em Todos os nomes (1987) ― um livro até meio esquecido pela crítica ―, vemos um tal sr. José trabalhando numa espécie de cartório ― a Conservatória Geral do Registro Civil. Trata-se de um sujeito íntegro, de hábitos simples, que mora em um cubículo (inspiração do comunista Saramago?). Cansado da rotina burocrática pesada, da exploração de sua mão de obra e do chefe autoritário ― que o repreende ferozmente pela barba por fazer ―, ele decide se rebelar e usar os registros dos nomes para alterar a biografia das pessoas, fazer um exercício de ficção. A própria estrutura intricada, labiríntica da Conservatória pode ser vista como uma metáfora das dificuldades que encontramos para lidar com nossos dilemas internos. A atitude do sr. José, imoral, reflete sobre os limites éticos ante a repressão. O oleiro Cipriano é um senhor de 74 anos, personagem principal do livro A Caverna. Sua vida psicológica e material vai à bancarrota quando vê seus vasos de barro, fruto do trabalho de suas mãos, serem substituídos por vasos de plástico, vendidos em larga escala no grande Centro ― uma construção enorme, como os shopping centers. Na segunda metade do romance, Cipriano vai conhecer o Centro, ver o que há lá de tão extraordinário. Depara-se com uma multidão de consumidores encantados com aquele lugar, onde poderiam fazer suas compras com facilidade e até mesmo morar lá dentro. O título do livro é uma analogia ao mito de Platão, onde as pessoas são cegas ― ou ofuscadas ― à sua condição de prisioneiras. A caverna é o Centro, e as pessoas que estão lá dentro são cegas em relação ao consumo. A Caverna oferece-nos um arsenal de caminhos para reflexão. No primeiro momento, dá-se a desumanização do homem ― ou a perda da sua liberdade ―, quando Cipriano passa a não manipular mais a natureza (o barro) com as próprias mãos. Ele é uma vítima do avanço tecnológico, da produção em larga escala. A questão do consumismo exacerbado, motor do capitalismo, é retratada quando Cipriano entra no grande Centro e vê aquela multidão indo às compras. Saramago era um observador crítico contemporâneo. Atento aos acontecimentos. Em 1996, houve uma celeuma no meio científico com a notícia da clonagem da simpática ovelha Dolly. Foram inúmeros os intelectuais que associaram o feito a um perigo para a humanidade. Houve um temor generalizado de se concretizar a manipulação genética para produzir uma sociedade em castas, como os "Ípsilons" (menos evoluídos) e os "Alfas" (muito evoluídos) de Admirável Mundo Novo, ficção científica de Aldous Huxley. Saramago digeriu isso tudo e lançou, em 2002, O homem duplicado. No livro, Tertuliano Máximo é um professor de história que, ao assistir a um filme em VHS, se surpreende ao ver um clone seu em cena. Tertuliano trava uma batalha hercúlea à procura do seu duplo, permeado pela angústia, pelos dilemas e os perigos de se ter um semelhante à solta. Inúmeras obras ou autores são desenterrados para afirmar ou ilustrar a condição social ou humana. As sombras de Orwell (totalitarismo), Huxley (clonagem) ou Bradbury (manipulação cultural de massas) sempre estão presentes nas análises sobre o avanço tecnológico e seus efeitos na sociedade ou no indivíduo. Na mesma linha de raciocínio ― cada um a seu estilo ―, Saramago deixou, em seus romances, uma miríade de opções para a reflexão sobre as relações de poder dos Estados, sobre os dilemas morais, o consumismo, a perda de liberdade, a manipulação genética. O Saramago ensaísta será incluído no panteão de escritores sobre cujas obras muito vai-se falar. A opção pelo comunismo sempre prejudicou a análise das obras do escritor. A direita nunca o engoliu. Vai daí a exaltação à sua primeira fase, histórica, e uma certa má vontade em relação aos seus romances com tom ensaístico. Saramago era um humanista. E ser humanista é condição anterior (a priori) a ser de centro, direita ou esquerda. Em 1997, a Nasa enviou a Marte o Sojourner ― um pequeno carro-robô que custou milhões de dólares ― para analisar o solo daquele planeta. Perguntado sobre o que achava do feito, Saramago foi lacônico: "não consigo entender como o ser humano consegue gastar milhões e milhões de dólares para enviar a Marte uma geringonça, enquanto há ainda gente morrendo de fome aqui na Terra". Afora as discussões anacrônicas sobre direita e esquerda, voltando ao básico do básico do ser humano, não é que a sombra desse português nos faz pensar? Wellington Machado |
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