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Terça-feira, 4/12/2001 Replicantes em Gotham City Alexandre Ramos 1. Um homem comum, e preocupado. Tenho visto o tema da clonagem ser debatido por juristas, cientistas, políticos, religiosos e filósofos. Já eu não possuo nenhum título, acadêmico ou outro, que me habilite a dar palpite no assunto. E que este seja, então, o meu título: um homem comum, falando apenas em seu próprio nome, perplexo com aquilo que mal compreende do que lê nos jornais. À minha moda, meio trôpega, vou reproduzir aqui, com outro arranjo, o que já tive oportunidade em ocasiões anteriores de refletir junto a um público específico - a saber leigos e religiosos católicos - , mas numa linha de argumentação que, espero, fiéis de outras religiões e mesmo pessoas sem religião possam incorporar como uma modesta contribuição às suas próprias reflexões sobre a espécie mais ameaçada de nossos dias: a humana. E ameaçada, perversamente, justamente ali onde é mais frágil: o ventre materno, a doença, a velhice e o cativeiro. Aborto, manipulação genética, eutanásia e pena de morte, sob o paradoxal discurso dos famosos "direitos humanos", constituem aquilo que, numa expressão também paradoxal, João Paulo II já chamou de "cultura da morte"(1). Os aspectos técnicos e jurídicos da clonagem me escapam por completo, e se aqui vou expor principalmente meus receios e temores, isso não se deve à uma atitude obscurantista, como a do terrorismo verde que é contra a civilização e o desenvolvimento, mas antes bem o contrário: a engenharia genética, como qualquer outra ferramenta, é moralmente neutra. É sobre o uso que se fizer dela que pode incidir um juízo moral. Suas possibilidades para a cura e prevenção de doenças e para a produção de alimentos e matérias-primas são fantásticas demais para serem desprezadas, mas os perigos potenciais para a homem e a natureza são enormes, talvez até maiores que os benefícios, e tendem a ser minimizados, por um lado, pela gritaria histérica que acaba obtendo exatamente o resultado oposto ao que pretende; e, por outro, pelo desejo de poder e dinheiro amparado por aquilo que só posso chamar de pura animalidade de nossos dias, que transfere para o corpo, na forma de beleza, saúde e prolongamento da vida todo o sentido da existência humana. 2. A ecologia. Se, por um lado, em relativamente pouco tempo será possível uma grande produção de alimentos a baixo custo, por outro milhões de camponeses serão arrancados de suas terras numa perturbação social de porte jamais visto na história. Ao mesmo tempo, é impossível prever e mais ainda controlar o impacto de vírus, bactérias, plantas e animais transgênicos, que se recombinariam de diversos e imprevistos modos na biosfera, com um efeito não muito diferente, em algumas situações, de uma aplicação deliberadamente militar de armas biológicas. Animais programados geneticamente poderão constituir verdadeiras "fábricas" de substâncias químicas e fármacos para uso humano. Mais do que programação, a replicação e a recombinação de genes podem até mesmo criar espécies híbridas ou mesmo inteiramente novas, e não está excluído um híbrido animal/humano desenvolvido com vistas a testes de medicamentos ou "doação" de órgãos. O homem reduzido a um almoxarifado de peças de reposição, num mundo bio-industrial em que a vida selvagem será substituída por animais e plantas transgênicos: é para isso que os legítimos herdeiros e sucessores de Josef Mengele trabalham. 3. O homem. A mesma técnica que permite prevenir doenças é a que concede a pais (e antes e mais do que a eles a governos e empresas) a possibilidade de planejar e definir não apenas traços físicos mas talvez inclusive psíquicos, alterando profundamente a noção de paternidade e inaugurando uma sociedade eugenésica. Nessa mesma linha, Jeremy Rifkin, presidente da "Foundation on Economic Trends" (Washington, EUA), diz em El siglo de la biotecnologia(2) que "escolas, empresas, companhias de seguro e governos poderão usar informações genéticas para determinar o curso da educação de uma pessoa e suas perspectivas de emprego e salário. Surgiria uma nova forma de discriminação, baseada no perfil genético, transformando nossas noções de sociabilidade e eqüidade. A meritocracia daria lugar à genetocracia, onde indivíduos, grupos étnicos e raças seriam classificados e restringidos, cada vez mais, segundo seu genótipo, estabelecendo em todo o mundo um sistema informa de castas biológicas". 4. Patentear a vida? A tecnologia genética pode e deve ser utilizada para produzir certos medicamentos que, pelas técnicas atualmente disponíveis, só poderiam ser obtidos em pequena escala e com alto custo. Entretanto, se é justo que alguém que cria algo novo tire proveito econômico disso, esse princípio não pode ser transferido para o domínio da vida humana: o homem não inventa, muito menos cria células, tecidos e órgãos. Métodos e processos certamente são suscetíveis de serem patenteados, mas seres vivos e suas partes, não. Cientistas como Lev Kiselev, da Academia Russa de Ciências, consideram aceitável a eliminação de animais após os experimentos, mas entendem também que é inadmissível fazer o mesmo com seres humanos, o que acabaria se tornando inevitável com a clonagem. De maneira ainda mais contundente, D. Elio Sgreccia, vice-presidente da Pontifícia Academia Pró-Vida, já declarou que "pessoas não podem ser tratadas como animais de laboratório. O valor de um homem não é igual ao de um rato". 5. Pensando um pouco sobre ética. Até aqui, mesmo com uma ou outra referência a autoridades católicas, argumentei em termos aceitáveis a qualquer um. Agora gostaria de tentar apontar aqueles que me parecem os limites mais evidentes de uma ética "leiga", de uma ética que se remete tão-somente a si mesma, e farei isso comentando o admirável debate entre o cardeal de Milão, o jesuíta, biblista e papabile Carlo Maria Martini e o semiólogo Umberto Eco, reunido nas páginas de Em que crêem os que não crêem?(3). A questão central do debate deriva de uma pergunta do cardeal Martini, que quer saber "em que se baseia a atitude moral e a visão de mundo de quem não se refere a princípios metafísicos ou a imperativos categóricos universalmente válidos". Eco procura, então, viabilizar uma ética "natural", ou "leiga", baseada na consciência da importância do outro e no fato de que o conceito de "lei"(4), indispensável à civilização e presente de várias maneiras nas culturas mais rudimentares, consiste essencialmente na regulamentação das relações interpessoais. Ora, mesmo a própria ética "sobrenatural", ou "religiosa", sempre encarnada em circunstâncias culturais, sócio-políticas e econômicas bem determinadas, já nos deixa perplexos: os muçulmanos são perseguidos e exterminados na Sérvia, e, por sua vez, perseguem e exterminam os cristãos na Indonésia, sendo que estes lutam entre si na Irlanda. Paralelamente à concepção aristotélica do homem como "animal político", isto é, como naturalmente social e sociável, a experiência cotidiana nos ensina que 1) inveja, ódio e ciúme constituem um componente indissociável da natureza humana e 2) ao contrário do que acontece com animais gregários, o homem distingue entre bem individual e bem social —, de modo que, de certa forma, é possível afirmar que não existe uma ética "natural" para quem defende aquilo que o cardeal Joseph Ratzinger qualifica de "cinismo da autocriação total do homem". Para estes, o homem é tão somente fruto de si mesmo, da cultura que produz e da qual é, ele próprio, produto. Há aqui um beco sem saída. Por outro lado, é perfeitamente possível falar em uma ética natural a partir do estatuto ontológico do homem, estabelecido por Deus, e que, muitíssimo ao contrário do que queria Nietzsche, nos dá plena liberdade, dentro dos limites do próprio ser humano, cuja recusa não pode acontecer senão num quadro de infantilismo ou outra psicopatologia grave. Apesar de todo o aparato de nada menos que uma teofania para envolver a "outorga" dos Dez Mandamentos ao povo de Israel, creio que todos vamos convir que ali está uma ética universalmente válida, inscrita no coração de cada pessoa que vem ao mundo, e que não precisou ser "culturalmente elaborada": basta nascer humano para reconhecer aqueles valores, por eventualmente diferentes que possam ser suas expressões. Em tudo e por tudo um dos maiores humanistas de nosso tempo, Eco encontra o limite (e a insuficiência) de seu pensamento ao dizer que "a dimensão ética surge quando o outro entra em cena". Porque o outro não é, de modo algum, um "imperativo categórico absoluto". Ou seja, o outro não é, por si só, uma alteridade diante da qual me detenho espontaneamente. Posso fazer isso, posso ser educado para isso, posso até ser coagido a isso por um aparato jurídico-policial que regule as relações entre os indivíduos numa determinada sociedade. Mas não sou, absolutamente, obrigado a isso. Umberto Eco entende que a intolerância, entendida como o medo do diferente, tem origens biológicas, e pode ser superada mediante a educação para a convivência. Mas nem as abordagens isoladas — que descambam fatalmente para o reducionismo — nem os complexos multidisciplinares ou "holísticos" obtiveram êxito em, sequer no plano teórico, equacionar no homem o mistério do mal. Porque um problema é passível de equacionamento e resolução, mas um mistério, não. O mistério está, pelo menos em grande parte, para além da descrição racional, mesmo metafísica. Ou, melhor, mesmo quando pode ser descrito, dificilmente será explicado de modo satisfatório e exaustivo. Auschwitz, por exemplo, é um fato histórico(5) e, como tal, suscetível de várias abordagens; mas, é possível explicar Auschwitz? Contra os portões de Auschwitz se esfacelam todas as éticas, "naturais" ou "leigas", todas as leis e todas as veleidades de "humanismo". Estamos, pura e simplesmente, diante do mistério do mal. Definitivamente, não é possível "preservar a ética num mundo sem Deus". 6. O ponto de vista é a vista de um ponto O físico Marcelo Gleiser diz que, "quando se investigam as origens do universo, quanto mais se regride no tempo menos as atuais teorias dão conta de explicar a coisa, e vão se reduzindo a hipóteses cada vez mais hesitantes, por engenhosas que sejam"(6). Ele chega a afirmar que, mesmo que um dia tenhamos uma teoria física da origem do universo, nem assim será explicado o mistério da Criação, porque, afinal, de onde terão vindo as leis e conceitos que constituem a teoria? Para ele, "a melhor atitude em relação ao mistério da Criação é a de complementaridade. A ciência oferece um relato, a religião, outros (vários). É importante aceitar que ambos têm limitações, o que não tira em nada sua beleza e importância". Só para esclarecer, acrescento que o que ele chama de "limitação" da noção religiosa da criação do universo por Deus se refere à sua forma literária. O relato do Gênesis, por exemplo, pretende ensinar que Deus criou tudo o que existe, e a partir do nada, mas não se trata ali de dizer como exatamente a coisa aconteceu. Essa é a atitude de um cientista que conhece os limites de sua ciência, e mantém a mente aberta. Outros já não são bem assim. Ao constatar que os seres humanos têm cerca de 30.000 genes, bem menos do que se supunha, Francis Collins, coordenador do Projeto Genoma Humano, declarou que isso "é uma facada no orgulho da nossa espécie. Como podemos continuar de cabeça erguida sabendo que temos apenas uns poucos genes a mais do que um verme"?(7) E o médico Drauzio Varella continua no mesmo tom: "O Homo sapiens é simplesmente uma entre milhões de espécies. Não fizemos nenhuma falta à vida na Terra durante praticamente toda a existência dela e, se um dia formos extintos, nenhuma barata, cigarra ou besouro chorará a nossa ausência"(8). Não creio mesmo que uma barata possa chorar seja lá pelo que for. O que não quer dizer que desconsidero totalmente a barata. Baratas não estupram, não escravizam, não torturam, não matam por dinheiro. Franz Kafka tem aquela história do sujeito que um dia acordou transformado em barata (acho que na verdade um inseto não especificado, cito de memória), mas espero que isso não me aconteça. Apesar dos pesares, prefiro continuar pertencendo à espécie que conhece o amor (e ao qual o ódio dá ainda mais valor), as sinfonias de Beethoven, o prazer de andar de mãos dadas numa praia à tarde; uma espécie que produziu Francisco de Assis e Teresa de Calcutá, que ergueu a basílica de São Pedro e que é capaz de olhar para o universo e dizer que "os céus proclamam a glória do Senhor, e o firmamento a obra de Suas mãos" — coisas que barata alguma jamais fará. 7. Para o fim, um filme Gosto muito de cinema, e gosto muito de histórias em quadrinhos. Portanto é sempre com certa apreensão que vou assistir à transposição para a tela dos meus gibis preferidos. Vejam o caso do Batman, por exemplo. Vilões até bons, especialmente Jack Nicholson como o Coringa e Dany De Vito como o Pingüim. Mas Michael Keaton, Val Kilmer e George Clooney como o Cruzado de Capa, francamente... Por outro lado, a adaptação de X-Man dirigida por Bryan Singer superou as expectativas. Patrick Stewart como o Professor Xavier e Ian McKellen como Magneto deram o necessário peso aos personagens, e Hugh Jackman fez o Wolverine que todos os aficcionados gostaríamos de ver. X-Man começa com uma bom "gancho": Magneto, ainda menino, exerce sem controle seu poder quando é separado dos pais na entrada de um campo de concentração nazista. Judeu e mutante, carregará pelo resto da vida, juntamente com esse duplo estigma, uma amargura que o fará voltar-se contra os humanos "normais", sendo sempre detido por Xavier, este por sua vez também mutante e superdotado, mas preso a uma cadeira de rodas (aqui também um duplo estigma). Respeitando as pretensões do filme, que vão pouco além do desejo de divertir, temos ali mais uma parábola do medo e do ódio que o diferente provoca. Ontem, os judeus — e com eles quaisquer etnias, religiões e culturas diferentes da nossa —; num presente hipotético, os mutantes. Não falta o político demagogo que pretende se aproveitar das desconfianças e ressentimentos mútuos, nem os cientistas nazistas que desejam "aperfeiçoar" ainda mais um mutante, com vistas a finalidades militares. Falando em cientistas nazistas, todos conhecemos os casos daqueles que trabalhavam com foguetes ou com energia nuclear e, levados para os Estados Unidos ou para a extinta União Soviética incrementaram os programas espaciais e nucleares daqueles países. Mas não vejo motivo algum para que outros cientistas, trabalhando em linhas de "pesquisa" semelhantes às de Josef Mengele, também não tenham sido convidados, de modo muito discreto e persuasivo, a continuar seus estudos a serviço das CIAs e KGBs da vida. Como a realidade freqüentemente tem deixado no chinelo os mais hábeis ficcionistas, como aliás o provam acontecimentos recentíssimos, não acredito que essa hipótese seja muito delirante. Mas a engenharia genética está nos abrindo as portas para que mais uma tremenda discriminação se acrescente ao nosso já vasto repertório: depois de odiar o diferente, teremos agora a oportunidade de odiar e, com muito mais razão e intensidade, de sermos odiados pelo igual. O conhecimento começa pela percepção de que eu sou eu, de que não me confundo com o mundo que me cerca. Posso até constituir uma nota que, somada a outras, vai formar um acorde na grande sinfonia cósmica, como quer um belo personagem de Isaias Pessotti. Posso ser "holístico" até enjoar, mas eu sou eu. Como diz Romano Guardini, "não posso explicar como sou eu-mesmo; não posso entender por que eu deva ser isto ou aquilo; não posso explicar minha existência por leis naturais ou históricas, porque não sou uma necessidade, mas um fato". O próprio Deus, por sinal, quando instado por Moisés a apresentar seus documentos, não teve nada melhor para dizer do que "Eu Sou Quem Eu Sou". Não me chamo Jorge Luis Borges, e sinto no máximo uma compaixão permeada de ironia por aquele que o espelho me apresenta todos os dias. Mas sei que eu jamais seria capaz de suportar o ódio de alguém que, me olhando com meu próprio rosto, de dentro dos meus próprios olhos, me acusasse de lhe ter roubado o direito sagrado e inalienável de ter pais, de ter um patrimônio genético normal, o direito sagrado e inalienável que interesse algum, que lei alguma pode subtrair a alguém: o direito da alteridade, o direito de ser outro, o direito que me confere a imagem e semelhança com Deus, e que me fará repetir diante do trono do Altíssimo, quando chamado a prestar contas dos meus atos, a tremenda expressão usada por Ele mesmo: "Eu Sou Quem Eu Sou". Notas (1) E o que provoca o ódio ao papa por parte de cientistas, artistas, jornalistas, intelectuais e outros bem-pensantes são afirmações como esta: "Não hesito em proclamar diante de vós e diante do mundo que toda a vida humana, desde o momento da concepção e em todos os estágios subseqüentes, é sagrada, porque é criada à imagem e semelhança de Deus. Nada ultrapassa a grandeza ou a dignidade de uma pessoa humana. A vida humana não é apenas uma idéia ou abstração: é a realidade concreta de um ser que vive, que age, que cresce e se desenvolve; de um ser que é capaz de amar e de servir à humanidade" (João Paulo II, homilia em Washington, EUA, 1979). (2) Ed. Crítica, Barcelona, 1999. (3) Ed. Record, Rio de Janeiro, 2000. (4) O que já rende outra discussão: nem sempre as leis são justas, ou morais, e da mesma forma a opinião da maioria. Exemplifico: legalizar o aborto, ou a supremacia de uma raça sobre as demais, é suficiente para que aceitemos essas coisas? É possível identificar, sem mais, o legal com o justo, ou com o moral? (5) Assim como outros que o próprio Eco relaciona — o massacre dos inocentes, os cristãos no circo, a noite de São Bartolomeu, a fogueira para os hereges, os campos de extermínio, a censura, as crianças nas minas, os estupros na Bósnia —, e aos quais aplico o mesmo raciocínio. (6) Jornal "Folha de S. Paulo" (caderno "Mais"), 18/2/2001. (7) Revista "Veja", 21/2/2001. (8) Jornal "Folha de S. Paulo" (caderno "Ilustrada"), 24/2/2001. Alexandre Ramos |
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