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Quarta-feira, 8/9/2010
Os diários de Jack Kerouac
Luiz Rebinski Junior


LIANA TIMM© (http://timm.art.br/)

Os mais cínicos costumam afirmar que uma mentira contada diversas vezes se transforma em verdade. Na literatura isso costuma acontecer com mais frequência do que se imagina. Em geral alimentados por uma ignorância quase inofensiva, os boatos aos poucos vão ganhando corpo e se transformam em verdades absolutas. Foi isso que aconteceu com um aspecto importante da literatura de Jack Kerouac, o mais famoso dos escritores beat.

Jack Kerouac levou a sério o aforismo de Maiakovski que diz não haver arte revolucionária sem forma revolucionária. Décadas depois a máxima foi revista por alguém que não lembro o nome, que a mudou dizendo que não há obra experimental sem vida experimental. Acho que foi o Leminski, mas realmente não estou certo disso, o que também não faz a mínima diferença aqui. Mas o fato é que Kerouac viveu como seus personagens; seus amigos eram como os amigos de seus protagonistas; e as aventuras de seus livros eram as suas aventuras. Enfim, um indício perigoso, que faz qualquer acadêmico corar, de que vida e obra andam, em muitos casos, coladinhas. A diferença entre os bons e maus escritores é que uns sabem, outros não, como colocar isso no papel.

Mas, mais do que ter seu nome associado a um tipo de escritor que se alimenta de sua biografia, Kerouac tornou-se símbolo de um tipo de escrita que ele, talvez, nunca tenha praticado e que faz a literatura parecer fruto de uma epifania. É que à Kerouac é atribuído um tipo de escrita alucinada, em que o autor, como se incorporasse um preto velho, derrama seu texto, de forma pronta, no papel e dali floresce uma prosa vigorosa e assustadoramente singular. Não é isso que se conclui depois da leitura dos Diários de Jack Kerouac ― 1947-1954 (L&PM, 2006, 360 pág.), livro em que o escritor descreve seu modo de trabalho durante a confecção de seus romances The town and city e On the Road.

A lenda é mais ou menos esta, conforme conta Douglas Brinkley no prefácio da obra: "O mito mais persistente sobre Kerouac é algo que ele escreveu On the Road em abril de 1951 em um frenesi de três semanas movido a café. Segundo a lenda, um dia, Kerouac, inspirado por suas cortantes viagens com Cassady nos três anos anteriores, enfiou uma bobina de delicado papel de arroz japonês na máquina de escrever em seu quarto no Chelsea, na West 20 Street ― para não distrair sua atenção ao trocar a folha ―, sintonizou em uma rádio de jazz do Harlem que ficava no ar a noite inteira e produziu uma obra-prima moderna".

Certamente essa é a versão da história que muitos dos leitores de Kerouac gostariam de acreditar ― e a qual muitos deles repetem incessantemente. Mas o que se lê nos "cadernos secretos", como o escritor chamava seus diários, é bem diferente. Os diários trazem anotações de um escritor disciplinado e preocupado com o andamento de seu livro. Mais do que isso, mostram um Kerouac extremante organizado, que escrevia previamente sinopses de personagens e preparava diálogos prévios antes de começar realmente sua maratona de escrita.

Ou seja, na literatura, definitivamente, não há espaço para milagres. É o que nos diz o próprio beat. Havia trabalho, muito trabalho. Era comum Kerouac escrever mais de um livro ao mesmo tempo. Tinha muitas ideias para livros e as colocava no papel. Algumas vingavam, outras, não. Mas nunca por falta de tentativa. Kerouac era meticuloso, um escritor que se prendia aos mínimos detalhes de seus livros, contrariando a ideia de um escritor desleixado, que seguia apenas seu gênio para compor obras de fôlego e trabalhosas. No parágrafo que segue, Kerouac descreve as diferenças entre The town and city, seu primeiro romance, e On the Road, o segundo.

"Enquanto sigo em frente, acho que quero uma estrutura diferente assim como um estilo diferente neste trabalho, em contraste com T&C... Cada capítulo um verso que compõe o poema épico, em vez de cada capítulo como uma declaração ampla e influente em prosa no conjunto do romance épico. É por isso que quero usar capítulos curtos, todos com um cabeçalho em verso, e muitos capítulos assim; desenrolando lenta, profunda e animadamente a história melancólica e sua viagem longa para dentro de um espaço estranho. E criar ritmos para esses capítulos até que fiquem como um colar de pérolas", escreve Kerouac em 30 de outubro de 1949.

Mas, se há algo crível na lenda de Road, é que seu autor trabalha de forma alucinada, ficando horas e horas imerso, na escrita e revisão, de seu mais importante livro. O que os diários mostram é que Kerouac era adepto de um modo de trabalho que muitos romancistas chamam de "empreitada". Ou seja, ficam-se dias e dias sem escrever, mas quando o trabalho começa, estende-se por longas jornadas. Jack Kerouac era um beberrão, e suas saídas para escutar jazz poderiam se alongar por várias e várias noites. Sempre conservou muitas amizades, e o que não lhe faltavam eram convites para drinques, jantares e recepções. Principalmente quando The town and city começou a receber elogiosas críticas nos principais jornais americanos. "Kerouac é o melhor e mais promissor dos romancistas cujos primeiros trabalhos foram lançados recentemente", escreveu a Newsweek, quando do lançamento de T&C.

O que fica claro é que Kerouac alimentava seus escritos a partir de suas experiências nas ruas e nas viagens constantes que fazia. "Escrevi umas cem palavras e resolvi descansar um pouco; fui para N.Y. escutar bop. Em uma cafeteria na esquina da 50ª com 8ª Avenue fiz anotações sobre a geração hipster".

As referências à sua produção diária aparecem com bastante frequência, assim como também suas leituras. "Acho que a grandeza de Dostoiévski está em seu reconhecimento do amor humano", diz Jack, em uma referência a um dos autores mais citados nos cadernos. Por essa e outras referências, pode-se perceber que Kerouac também não era nenhum leitor mediano que surgiu na literatura sem passar pelos grandes mestres do passado. Kerouac confirma, assim, a teoria de que todo grande escritor é, antes de tudo, um grande leitor. Suas observações sobre a literatura de gente como Shakespeare, D. H. Lawrence, Fitzgerald e Tolstói podem não soar como uma sentença definitiva, mas o certo é que Kerouac ruminava os autores que lia. Ficava, por vezes, noites e noites intrigado com certos trechos ou mesmo frases soltas dos livros que gostava. "O romancista nunca deve dar os fatos crus, mas transformá-los com uma razão que é inseparável do estado de ânimo do trabalho como um todo. Do contrário, é jornalismo", escreve Jack sobre o trabalho do romancista, em dezembro de 1949.

Kerouac fazia de suas experiências de vida algo vital para sua escrita. Não ficava quieto por muito tempo em um mesmo lugar, se deslocava de um lado para outro, sempre atrás de novas experiências que lhe dessem munição para sua literatura. Nesse sentido, ele foi um escritor bastante singular. Não que seja o precursor dos escritores viajantes, mas Kerouac exercitou esse tipo de literatura como poucos. Apesar de o acaso rondar sua literatura, já que era essencialmente um viajante, seus passos eram planejados e a fonte de sua inspiração previamente calculada e escolhida.

"Fechei a casa em Denver, fui para Frisco em um Ford 1940 por 11 dólares. Essa viagem memorável será descrita em algum lugar (no livro Chuvas e Rios). Agora moro em Richmond Hill. Prossigo o trabalho esfarrapado em On the Road. Vou a Paris no início de 1950 e vou terminar Road e aproveitar as garotas francesas e as ruas de Paris. Também vou começar Mito da noite chuvosa, que será meu terceiro romance".

A moral da história é que realmente Kerouac foi um escritor prolífico, que tinha várias ideias e não titubeava em colocá-las no papel, prova disso é sua extensa bibliografia, eclipsada pelo sucesso de On the Road. Apesar de ter a capacidade de se concentrar em vários textos ao mesmo tempo, o escritor dedicou muitos anos à escrita de Road.

"Bem, Jack fez algo que ele jamais admitiria mais tarde. Ele fez muita revisão, e foi uma revisão muito boa. Ah, ele nunca, nunca admitiria isso, porque ele sentia que aquilo devia sair como pasta de dentes do tubo e não ser alterado, e que toda palavra que tinha passado por sua máquina de escrever era sagrada. Mas, ao contrário, ele revisava, e revisava bem", diz Malcolm Cowley, editor que trabalhou na edição de Road. Jack começou a rascunhar seu grande livro em 1948. Até 1957, quando finalmente foi publicado, o escritor não deixou Road em paz, fazendo diversas modificações. Quase uma década. Período em que a "prosa espontânea" foi sugada pela autodisciplina criativa.

Para ir além





Luiz Rebinski Junior
Curitiba, 8/9/2010

 

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