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Terça-feira, 21/9/2010
Poesia em zona de perigo: Donizete Galvão
Jardel Dias Cavalcanti

O novo livro de poesias de Donizete Galvão tem um tom grave. Diferente dos outros, onde o poeta buscava uma certa transcendência através da transfiguração dos elementos do mundo, o que se publica agora desvela perdas, retalhos, estilhaços. Mais doloridos, os poemas não são melancólicos como em outras safras. Aferram-se a uma certa brutalidade dos fatos.

Talvez uma resposta irritada a um estado de coisas que já o cansou. Decide, por isso, aceitar mais o fato (com nervos expostos, é claro) de que nós e, por que não, o mundo, temos como marca principal o fato de termos nos tornados seres inacabados, como sugere o título do seu livro O homem inacabado, editado pela Portal Editora.

Diferente da ideia de se tirar leite das pedras, agora Galvão decide dar ouvido às pedras por elas mesmas. Revela "o grão amargo do equívoco", mas sabe que "ninguém sai dele de mãos vazias", como sugere no poema "Saturação". E a ideia do próprio título do poema não revela o que eu disse acima? Saturado, o poeta deixa os estilhaços aparecerem na sua poética, às vezes em belíssimas imagens, plásticas, mas violentas, como no fantástico poema "A romã": "aberta/ ― cicatriz risonha ―/ a exibir dentes de rubis", mas sangrenta fruta como "ninfa deflorada".

Não há mais morada tranquila nessa poesia que é "cicatriz de um ninho quente", "infância onde o homem já não cabe", como no poema "(Abrigo)". O abrigo do título do poema se fecha em parênteses como proteção ou prisão? Ao terminar o livro com o poema "Um outro homem inacabado" não faz mais que concluir de forma dura o sentido da existência na cidade moderna, onde "cada homem é estilhaço,/ entulho jogado na caçamba".

Na incerteza do existir, na total ausência de concretude, tomado pelo mundo flutuante, o poeta anota a identidade entre a "cidade impermanente" e o fato de que ali o "homem jamais está inteiro". Retalhos, mutações, perdas, demolições, palavras que revelam a total irrelevância de se tentar construir um lar para si mesmo, que seria o mesmo que plantar uma "flor amarela que teima em brotar/ em zona de perigo".

O sinal mais trágico dessa poesia se revela na irrelevância da transcendência, ainda no poema "(Abrigo)", quando o poeta mira uma "casa branca" e "imaterial" como possibilidade perdida de guarida, pois "a vida/ já perdeu/ o seu sal". Resultado de uma depreciação do humano no mundo fetichista de uma existência falsa, apenas imagética, onde não se precisará da organicidade do suor do rosto, nem do rosto, posto que os seus músculos são apenas "um objeto em desuso".

Os poemas são, um após o outro, uma "guerra íntima", sem "nenhum indício de paz", já que a existência se concretiza apenas na negação, como no poema "Esquivo", onde a sombra do poeta é fora de foco, do eixo, da ordem, da forma, "vulcão de afeto,/ tua desavença/ com o mundo".

Retomando a ideia da alienação do trabalho, tal como Marx a via, o poeta denuncia o vazio sisifiano do existir: "Preso no círculo da repetição/ morre um pouco/ ao fim de cada dia". Não é um poema social, mas, ao contrário, uma percepção existencial da impossibilidade de se realizar inteiramente em qualquer tarefa, já que, como no poema "Uso", "o que o homem gasta/ em suas mãos/ adquire a aura/ de suas dores".

O que pensar do poema "Vida minúscula" se não que o poeta, esse ser descentrado, teve uma destinação traída, alimentado por "um veneno/ que o aparta dos seus", fazendo-o viver "num mundo/ que sempre lhe será estranho". Errado nos dois mundos, o da terra, da enxada, das tarefas e "da descoberta da língua" desordinária (da poesia), ele se condena à errância. A imagem que se adéqua a essa ideia pode ser lida em alguns dos versos do poema "Relento":

"na terra e no vento
no desamparo da queda
sem colo
ventre
útero
como último abrigo".

O poeta se conscientiza de sua total inadequação e também de sua total inutilidade. Poemas para quê? Metáfora disso está em "O cortador de bambus":

"Cortei bambu: para ti, meu filho
quando não precisamos mais de bambus
se temos cimento e tijolos?".

Um outro poema merece destaque, é "Night Windows". Talvez um dos mais pessimistas do livro, pois leva às últimas consequências a ideia do fracasso da existência deste "homem inacabado". Consumido na solidão das noites, "está por um fio" e poder vir a ser "um corpo que cairá no negrume da noite":

"O quarto está deserto
Uma das janelas está aberta.
O vento suga a cortina branca para fora da casa.
Alguém está por um fio.
Alguém aposta sua última ficha.
Um corpo cairá no negrume da noite".

Vários poemas no livro podem estar falando da condição do poeta, ou da condição humana como um todo, como uma condenação ao desterro. Em "Anedota japonesa" as imagens da vida negativa desfilam para um final no mínimo pessimista. Imagens de peixes mecânicos, terno de vidro quebrado, armários de espanto, corvos com bicos de ferro que furam o cérebro, vísceras de Mishima... imagens de uma solidão atroz pela qual "Nenhum cão na imensa Tóquio ganirá".

A orelha do livro, escrita por Reynaldo Damazio, relembra "a imagem do anjo de Klee, contemplando as ruínas do mundo, evocando a situação do poeta no tempo presente". E se o corpo, lugar da existência aos pedaços, é pura miséria na poesia de Galvão, as ilustrações do artista plástico Rogério Barbosa radiografam os destroços.

Donizete Galvão afina sua língua nesse novo livro com poesias agora mais ácidas e fruto de tormentos, mas se o que emite é "grito, gemido, uivo, corte, ferimento", o que se pode ver é que aqui é que sua poesia tem ainda mais "cabimento".

Nota do autor
Para comprar o livro acesse www.portaleditora.com.br.

Jardel Dias Cavalcanti
Londrina, 21/9/2010

 

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