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Sexta-feira, 15/10/2010 A suprema nostalgia Marta Barcellos Não se faz mais nostalgia como antigamente. A formidável frase do jornalista Geraldo Mayrink, resgatada em seu obituário no ano passado, me ocorre ao observar a reação dos espectadores ao filme A suprema felicidade, de Arnaldo Jabor, exibido no Festival do Rio. "Que saudade dos anos 50!", dizem os que sequer tinham nascido naquela década. Em um esforço para entrar no clima, tento encontrar em mim algum resquício da tal nostalgia que todos os meus amigos com mais de 30 anos parecem cultivar com algum orgulho. Mayrink vem ao meu auxílio, e me recordo com saudade dos tempos em que o jornalismo diário preocupava-se com o esmero de seus textos. Quando cheguei ao jornalismo, além de profissionais admirados pela escrita caprichada, as redações tinham uma boa cota de nostálgicos a suspirar pelo fim das máquinas de escrever, das laudas coladas, do ambiente barulhento e enfumaçado. Como "foca", quase me envergonhava de ter começado a carreira em uma das primeiras redações informatizadas. Intimidava-me com o passado respeitável, mas percebia a confusão: os mais velhos tinham saudade da própria juventude, não dos empregos que certamente depreciavam antes de estarem afastados o suficiente para que suscitassem tanta nostalgia. Assim como hoje evito criticar quem trata cachorro como filho (vai que na velhice preciso recorrer a tal afeto), esperei que o tempo me trouxesse a inevitável saudade das virtudes e dos valores de outrora. Comecei a desconfiar que a nostalgia não era regra quando a internet proporcionou os primeiros encontros de exs-algum-grupo-do-passado. Não conseguia me identificar. Havia os nostálgicos do colégio, que reencontravam a felicidade perdida e os apelidos de infância entre rodadas de chope, e também os nostálgicos da faculdade, ciosos do vínculo que os manteriam próximos para sempre da deliciosa irresponsabilidade juvenil. Depois da curiosidade inicial, e da constatação da pouca importância desse passado para mim, eu me desinteressava, percebia aquele ritual de recordações como um tanto excessivo. Em conversas com amigos do presente, descobri outras pessoas que desconfiam da memória seletiva dos saudosistas e dessa constante celebração dos valores antigos, em geral desdenhando as conquistas do presente. A mania é especialmente estranha quando se trata de jornalistas que, por estarem superconectados com a atualidade, deveriam experimentar o estado de excitação diante de tanta novidade, da iminência de novas possibilidades, o mundo tão pequeno e próximo, tudo acessível por um clique. Tanto assunto, e o meu cronista preferido só fica feliz discorrendo sobre o passado; o presente sempre tratado com azedume e rabugice. Viro a página do jornal, em busca de algum frescor verdadeiro, quem sabe um novo colunista, alguém que ainda perambule pelas ruas com curiosidade, e talvez escreva na internet. Se o cronista ― talvez estimulado por seu talento para a ficção, mais utilizável no tempo pretérito ― perde-se com frequência em reminiscências, recorro ao ensaísta para organizar o meu pensamento. Roberto Pompeu de Toledo, escavando o conceito de felicidade, critica os pais que impõem esta pesada meta aos filhos e apresenta uma resposta à ardilosa pergunta: "Você é feliz?". Segundo ele, uma solução consequente para a questão exige que coloquemos na balança a experiência passada, o estado presente e a expectativa futura. A conclusão pode não ser clara, ressalta, mas eu concluo que a balança a favor do passado pode identificar nostálgicos em potencial. Uma infância feliz, disse certa vez a psiquiatra Nise da Silveira, pode ser quase tudo na vida de uma pessoa, e quem sou eu para pregar as vantagens do sofrimento nas idades mais tenras. De qualquer forma, a tal balança mostra a armadilha de se instalar a felicidade em um tempo acessível apenas pela nostalgia, no caso das pessoas que tiveram uma infância e uma adolescência extremamente satisfatórias, repletas de momentos alegres que ficaram marcados na memória. Por sinal, Pompeu de Toledo começa seu ensaio com uma distinção providencial: "Felicidade é uma palavra pesada. Alegria é leve, mas felicidade é pesada." O peso de ter a própria felicidade ― e não apenas as alegrias boas de relembrar ― irremediavelmente associada ao passado pode fazer a nostalgia transformar-se em uma doença. Não estou aqui exagerando, nem sugerindo que Arnaldo Jabor e os espectadores lamuriosos de seu filme devam procurar tratamento. Refiro-me à origem da própria palavra e de sua primeira utilização. Composto a partir dos radicais gregos "nóstos" (que significa regresso) e "álgos" (dor física ou moral), o termo nostalgia foi usado em 1678 para designar uma enfermidade a que os suíços seriam predispostos quando estavam ausentes do lar. Segundo a dissertação do médico suíço Johannes Hofer, a doença podia ter caráter mortal. A melancolia capaz de matar tornou-se depois tema de muitos estudos médicos na Europa, que identificaram a doença em exércitos que se afastavam de seus países de origem. Mais tarde, seria aplicada também para explicar o "banzo", que levava os negros africanos escravizados, transportados para terras distantes, a um estado de nostalgia profunda que induzia à apatia, à inanição e, por vezes, à loucura ou à morte. Nos dias atuais, em que sentimentos são facilmente diagnosticados como patologias, não deve ser difícil associar a nostalgia à depressão. Por tudo isso, recomendo aos amigos doses moderadas de nostalgia, inclusive na arte. Para mim, em pequenas porções ela pode ser especialmente saborosa, mais pela liberdade de ficcionar o passado do que pela tentação de desvalorizar o presente. Feita a advertência, vá ao cinema, ao teatro e aos livros, e descubra em que tempo (no futuro?) mora a sua suprema felicidade. Nota do Editor Marta Barcellos mantém o blog Espuminha. Marta Barcellos |
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