|
Sexta-feira, 3/12/2010 Paixão e sucata Daniela Kahn Os bons títulos de livros costumam ser uma síntese das obras que encabeçam. O mesmo vale para as boas aberturas de novelas. Entre os exemplos mais recentes está a de Duas Caras, com a pista sobre a assassina da trama, e a de Cama de Gato mostrando pessoas equilibrando-se numa gigantesca versão da trama de barbante conhecida como cama de gato ao som da sugestiva trilha "Pelo avesso", dos Titãs. Destas, a mais original é, sem dúvida, a que o artista Vik Muniz criou para a novela Passione. Nela vê-se um casal que se beija apaixonadamente, enquanto um músico toca o banjo. Essas imagens (inspirados na arte italiana?) se desmancham e se refazem continuamente, graças ao movimento deslizante de uma câmara que focaliza ora as figuras completas, ora os elementos de sucata que fazem parte da sua composição. Convém lembrar que reaproveitamento e reciclagem são bandeiras atuais e ecologicamente corretas que fazem parte do projeto mais amplo de sustentabilidade do planeta. Não é, pois, de estranhar a sua ampla divulgação na televisão. Enquanto os telejornais se dedicam à publicidade educativa, programas de auditório buscam aumentar a sua audiência investindo na recuperação de moradias, carros e outros bens usados. Na teledramaturgia, o tema é recorrente desde A Rainha da Sucata (1990), assinada pelo mesmo Sílvio de Abreu de Passione. Num girar estonteante da roda da fortuna, próprio da eterna reversibilidade reinante no universo do folhetim, personagens transitam com desenvoltura entre a mansão e o lixão. Tanto em Caminho para as Índias como na já citada Cama de Gato, empresários decaídos se transformam instantaneamente em catadores de lixo. Em Passione, ao contrário, o empresário emergente Olavo enriquece graças à sua empresa de reciclagem de lixo. A presença reiterada da sucata e do lixo nas obras de ficção televisiva aponta, no entanto, para questões que vão muito além do marketing ecológico. Em primeiro lugar, o folhetim televisivo é, como se sabe, o mais descartável dos gêneros ficcionais, graças ao seu estreito compromisso com o ibope. É também aquele que mais recicla conteúdos recorrendo a outros gêneros, como a literatura, o teatro, o cinema, a reportagem e, sobretudo, ao seu próprio repertório. Nesse último caso, quando não se reproduz como remake explícito, recorre à repetição de fórmulas, enredos, cenas, ações ou personagens. Todavia, a conjunção de paixão e sucata que a abertura de Vik Muniz propõe sugere ainda outro nível de leitura. Sem poder ignorar novos tempos, novos comportamentos e novas formas de relacionamento social, a novela é também o mais conservador dos gêneros ficcionais. Ela não nega a sua origem, o romance em formato de folhetim do século XIX, que esmiúça o quotidiano burguês, narrando a sua tragédia, sua comédia, suas mazelas e suas aspirações. O maior desafio da novela é (e sempre foi) articular valores consagrados como a união familiar, o amor eterno, a amizade fiel e, sobretudo, a ascensão social como coroamento do "bom mocismo", com uma realidade social cada vez mais marcada pelo sucateamento das instituições, dos valores e das relações pessoais mais próximas. E não é só isso: atendendo a outra convenção do gênero é imperativo que a trama seja conduzida, ainda que pelos caminhos mais tortuosos e inverossímeis, para o tão sonhado (e cada vez mais improvável) final feliz. Tudo isto numa embalagem sedutora que encante a audiência e alavanque o ibope. Passione faz jus ao seu nome. É o cenário de paixões avassaladoras. Porém, na maior parte dos casos, elas estão muito distantes do amor. Ganância, ódio, sede de poder, desejo de vingança, uma competitividade quase mortal entre membros próximos da própria família tanto no plano amoroso como no plano profissional são algumas dessas paixões. A própria relação amorosa nem sempre é retratada de forma romântica: num momento de raro realismo, o ludibriado Totó (Tony Ramos) confessa à sua Clara (Mariana Ximenes) que, apesar de saber de todas (ou quase todas) suas falcatruas, ele não consegue mais viver sem ela. A inovação desta novela está na corrosão intensa que contamina as relações das personagens, em todos os ambientes, tanto na mansão senhorial de Bete Gouveia (Fernanda Montenegro), quanto no sórdido prostíbulo que funciona sob a fachada de uma pensão ilegal. Ela é fruto dos segredos explosivos que quase todas as personagens da novela, independentemente de sua condição familiar ou social, carregam consigo e escondem das suas relações mais próximas. A começar pela revelação do segredo familiar da distinta Bete Gouveia, guardado por 55 anos, que dá início à ação. A revelação de cada um desses segredos cai como uma bomba nesse terreno social minado, onde a relação mais próxima pode se transformar, a qualquer momento, no pior dos inimigos. Esse potencial destrutivo, que desloca com facilidade o acento da vilania, está presente em todos os níveis de relacionamento pessoal aflorando com violência nos confrontos desabridos. Espanta a facilidade com que as personagens em conflito chegam às vias de fato: hierarquia, posição social, idade, amizade, parentesco, amor... nada é capaz de deter seja lá quem for. A falta de limites reina absoluta. Pergunta-se: onde foi parar a cordialidade brasileira sempre tão ciosa em preservar (pelo menos) as aparências? Numa trama recheada pelas usuais situações forçadas e inverossímeis, a instabilidade e a degradação social que se revelam nesses enfrentamentos constituem a nota realista. Voltando à abertura de Vik Muniz: o belo arranjo de sucata, compondo e decompondo o quadro da paixão romântica, remete de forma admirável não apenas ao enredo específico de Passione, mas ao próprio mecanismo do folhetim televisivo, com o seu compromisso básico de conciliar o ideário romântico com a realidade do seu referente. Assim como uma hábil câmara "ilumina" a obra do conhecido artista plástico, desvestindo a sucata de seus elementos repugnantes e desagradáveis, também o folhetim se especializou em atenuar e relativizar a crua realidade que teima em se insinuar nas frestas do enredo romanesco. Proporcionando momentos de sublime "passione", lacrimejantes encontros e reconciliações familiares, além do suspense, das cenas de humor e o sempre apaziguador final feliz o melodrama televisivo garantiu até agora a sua sobrevivência. A pergunta é: até quando um gênero tão intimamente ligado às formas da sociabilidade burguesa conseguirá driblar uma realidade que aponta implacavelmente para o sucateamento das mesmas? Nota do Editor Daniela Kahn é autora do livro A via crucis do outro ― Identidade e alteridade em Clarice Lispector. Leia também "A discreta crise criativa das novelas brasileiras". Daniela Kahn |
|
|