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Quarta-feira, 20/10/2010 Jornalismo literário: a arte do fato? Luiz Rebinski Junior O termo jornalismo literário é tão evasivo quanto são fascinantes os livros que costumam povoar esse hipotético gênero literário. O termo é altamente contestável, mas quase tudo que é publicado sob essa etiqueta costuma ser bom. Isso porque, no fundo, apesar de toda a discussão que permeia a origem desse tipo de escrita, o jornalismo literário não é outra coisa senão literatura. Um tipo de literatura específica, mas essencialmente literatura. Feita, sobretudo, por escritores que se iniciaram no jornalismo. O assunto é tão fascinante que nem mesmo especialistas entram em consenso sobre a definição do que seja jornalismo literário. Situação que se agrava quando a pergunta feita é sobre a origem do gênero. Por mérito ou simples capricho da História, sempre que se toca no assunto, quem aparece como tutor do gênero é o gordinho efeminado Truman Capote, autor do monumental A sangue frio. O livro realmente é uma obra-prima, mas não é a obra inaugural que o marqueteiro Capote nos fez acreditar que era. Em dois minutos de pesquisa, nomes como os de Charles Dickens e Balzac vêm à tona e nos mostram que o buraco é bem mais embaixo. É no século XIX, e não a metade do século XX, que o barato de misturar ficção com fato noticioso surgiu. Mas agora, com alguns anos de atraso, nos chega um livro que tenta colocar a casa em ordem em relação à geração mais festejada do gênero. A turma que não escrevia direito (Record, 2010, 392 págs.), de Marc Weingarten, não esmiúça a história do gênero; pelo contrário, passa raspando por uma investigação mais profunda, mas avisa logo de cara que seu objetivo é outro: falar sobre um período específico do jornalismo literário americano, o qual ficou conhecido como "novo jornalismo" e que, segundo Weingarten, teve uma trajetória curta, mas intensa. É sobre a turma de Talese, Hunter Thompson e Tom Wolfe que trata o livro. "Na Nova York do início dos anos 1960, com toda a discussão sobre a 'morte do romance', o homem das letras parecia estar emergindo novamente. Havia uma discussão considerável sobre criar uma 'elite cultural', baseada no que os literatos locais acreditavam que existia em Londres. É claro que essas esperanças foram frustradas pelo surgimento repentino de uma horda de visigodos, os Novos Jornalistas", diz uma citação de Wolfe no livro de Weingarten. O "novo jornalismo", portanto, surge no vácuo de um período de crise da ficção americana. Ou, conforme o jornalista e professor Sergio Vilas Boas definiu para mim em uma entrevista, "Truman Capote atirou no que viu (renovar a literatura de ficção com a não-ficção) e acertou no que não viu (o jornalismo)". Fato corroborado pela própria trajetória de Capote. Apesar de ter conseguido um emprego chinfrim ainda garoto na revista The New Yorker, que ficaria famosa pelo estilo literário de seus textos e colaboradores, Capote já era conhecido como um promissor escritor de ficção antes de escrever A Sangue frio. Com apenas 24 anos já havia conquistado a crítica com seu livro Other voices, other rooms. O exemplo de Capote não é regra, mas dá uma boa noção do perfil dos "novos jornalistas". Admitindo, de saída, os precursores do estilo, Weingarten se concentra em alguns nomes da cena americana dos anos 1960 que se utilizaram do jornalismo para produzir literatura. E aqui surge outra encrenca conceitual. Não dá para chamar de "movimento" ou "corrente literária" o "novo jornalismo" americano. Isso porque não foi algo planejado e não nasceu de um conluio de três ou quatro cabeças que pensavam de forma parecida. Pelo contrário, os membros desse clubinho imaginário não poderiam ser tão distintos. Os novos jornalistas tinham de um lado o dândi Tom Wolfe, com seu impecável terno branco, e de outro o maluco-mor Hunter Thompson, que em 2005 se matou com um tiro na cabeça. "O problema de Wolfe é que ele é rabugento demais para participar de suas histórias. As pessoas com as quais ele se sente confortável são chatas como bosta de cachorro, e as pessoas que parecem fasciná-lo como escritor são tão estranhas que o deixam nervoso. A única coisa nova e incomum no jornalismo de Wolfe é que ele é um repórter extraordinariamente bom", escreveu Thompson em um ensaio que tinha como objetivo distinguir sua abordagem agressiva daquela de seu rival mais próximo, Tom Wolfe. Outro contraste, que reforça o caráter antigrupo do "novo jornalismo" americano, se dá entre o próprio Wolfe e Jimmy Breslin, um jornalista nova-iorquino que ficou famoso por retratar a plebe de sua cidade, assim como fez George Orwell em Na pior em Paris e Londres, outro clássico do gênero. Breslin, que teve o seu livro O Traidor, sobre a máfia americana, publicado por aqui, tem uma de suas reportagens mais famosas esmiuçada por Weingarten. Quando os Estados Unidos choravam a morte de Kennedy, Breslin virou seu bloquinho para outro personagem: o coveiro que enterrou o homem mais importante do país. Weingarten descreve assim as diferenças entre os dois escritores: "Se Jimmy Breslin era o principal cronista dos despossuídos e esquecidos no Herald Tribune, Tom Wolfe era o escritor brilhante da classe de status que surgia naquela década, da nova cultura jovem dos anos 1960 e de seus costumes. Breslin e Wolfe trabalharam em extremos opostos do espectro socioeconômico, mas compartilhavam o mesmo talento excepcional para personagens e cenários". Mas talvez seja exatamente pela falta de explicações razoáveis para o seu surgimento que o chamado "novo jornalismo" americano tenha se tornado algo curioso e extraordinário. Em comum, Wolfe, Thompson, Talese e outros caras de talento que estavam cheios de energia criativa na metade dos anos 1960 tinham o desdém pelas regras básicas do jornalismo americano. A tal pirâmide invertida não servia para as suas histórias. É famosa a frase de Gay Talese que diz que "a humanidade só será feliz no dia em que o último editor for enforcado nas tripas do penúltimo". A tirada pode ser espirituosa, mas foi graças à figura castradora do editor que a maior parte das obras-primas do jornalismo americano veio ao mundo. Não é nem preciso dizer que jornalismo de qualidade custa caro. E também não é preciso dizer que não há um editor gente boa, disposto a financiar e avalizar pretensas obras-primas, em cada esquina. Então editores de grandes revistas, como Esquire e The New Yorker, foram essenciais para que grandes trabalhos viessem à tona. Ao todo, sete escritores fazem parte d'A turma que não escrevia direito. Além dos figurões conhecidos do público brasileiro (Tom Wolfe, Hunter S. Thompson e Gay Talese), Weingarten fala de autores como Joan Didion, John Sack, Jimmy Breslin e Michael Herr. Em uma espécie de reportagem da reportagem, Weingarten reconstitui os passos dos escritores retratados no livro em busca de suas histórias. Quase todos os livros comentados por Weingarten, foram pensados inicialmente como grandes reportagens. Mas todos, sem exceção, foram escritos por grandes escritores, ainda que, quando da feitura dos trabalhos, não passassem de... jornalistas. Ótimos jornalistas. Assim, o livro O teste do ácido do refresco elétrico, de Tom Wolfe, surgiu de uma reportagem para a revista New York. Wolfe encontrou o tema em junho de 1966, quando recebeu uma caixa de cartas enviada anonimamente. Endereçadas ao romancista Larry McMurtry, as cartas haviam sido escritas pelo escritor Ken Kesey, que havia sido preso por porte de maconha em janeiro de 1966 e fugido da liberdade sob fiança, indo para um exílio no México. Wolfe vai atrás do autor de Um estranho no ninho e tenta desvendar o mistério que o cerca. Depois de escrever seu best-seller, Kesey virou uma espécie de guru de um grupo que se tornaria conhecido como Marry Pranksters e que via no LSD o caminho para a salvação. O livro de Wolfe, além de ser uma investigação minuciosa sobre um personagem interessante, trazia várias invencionices literárias (onomatopéias, parágrafos escritos em formato de poemas, etc.), que à época deram uma boa chacoalhada na literatura de ficção americana. Livros como os de Wolfe e Hunter Thompson, que no mesmo período escreveu Hell's Angels: medo e delírio sobre duas rodas, iam além do meramente factual. Os escritores se permitiam entrar na história e interferir no resultado daquilo que estavam contando. Foi o que fez o repórter freelance Michael Herr no Vietnã. Herr era um talentoso jornalista que não gostava de redações e que convenceu o editor da revista Esquire a mandá-lo para a guerra com o objetivo de contar boas histórias de maneira pouco convencional. Herr entrevistou mais de duzentos soldados enquanto esteve no Vietnã. A partir dessas conversas, "seguiu seus impulsos literários, o que significava inventar soldados cujas personalidades eram costuradas a partir do que observava durante as muitas altas horas da noite que passava em conversas regadas a uísque, maconha e rock psicodélico de Jefferson Airplane e Grateful Dead". Bem, este resumo do modus operandi de Herr poderia facilmente definir o jornalismo literário. Baseado nesse estilo, Herr compôs Despachos do front, um dos livros sobre guerra mais influentes ainda hoje. Ainda assim, apesar de o novo jornalismo ter originado tantas obras-primas, seu método sempre despertou críticas. Afinal, como pode, por exemplo, um jornalista/escritor saber o que seu personagem estava pensando quando descreve um monólogo interior? Isso é jornalismo ou pura ficção? Perguntas difíceis de responder e que continuam fazendo do jornalismo literário um enigma delicioso. Luiz Rebinski Junior |
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