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Terça-feira, 26/10/2010
Em defesa de Nuno Ramos e da arte
Jardel Dias Cavalcanti

Contra os sentimentos nobres e o amor de mãe não há como se revoltar. Assim é, e estamos na jaula da inércia, da morte. Nuno Ramos e sua arte estão sendo vítimas dos "bons sentimentos" dos que se autodenominam defensores de práticas "politicamente corretas". Deus nos salve desta nova forma de ditadura imposta à arte, à ideia de criação, transgressão e insurreição. Essas pessoas, longe de querer debater, apelam, por vezes, à violência e ao constrangimento.

O mundo se levanta em armas para salvar três urubus (salvar? como, se sua presença na Bienal está devidamente amparada na lei?), enquanto ali, perto da Bienal, algumas crianças se ferram por falta de alimento, carinho e proteção social. São os urubus da rua, desprotegidos pela lei, pela desumanidade de todos nós que estamos bem alimentados, com a proteína dos bois sacrificados em frigoríficos para lá de baconianos e rembrandtianos. Alguém levanta a mão para defender essas crianças? Quando? Onde? Talvez em favor dos bois, sim, muitos se levantam.

Platão expulsou o poeta da República. Em relação aos artistas resta apenas desconfiança, ele apregoava. Esse sujeito, dado a fantasias, não oferece segurança ao mundo totalmente idealizado de seu projeto totalitário de perfeição social. O filósofo sabia aquilo que Baudelaire anunciaria lá na frente: "o homem de letras é o inimigo do mundo". A praga de Platão rondaria e perseguiria todos os grandes artistas rebeldes de todas as épocas.

Michelângelo era vigiado e censurado ao trabalhar na Capela Sistina, pois erotizava todos aqueles corpos das lendas cristãs e expunha a sodomia dos Cardeais de Roma. Baudelaire e Flaubert foram condenados por imoralidade pelas suas obras de arte: As flores do mal e Madame Bovary. Goethe foi condenado por incentivar, indiretamente, o suicídio entre jovens apaixonados, com seu magnífico romance Werther.

Honoré Daumier foi preso por seis meses por caricaturar o rei Luis Filipe como Gargântua, a quem o povo francês lançava goela abaixo os frutos do seu trabalho sem conseguir saciar a voracidade do monarca, mostrando ainda seus ministros acumulando em cestos os impostos pagos pelo povo e a pérfida distribuição de privilégios e monopólios a homens de negócios com interesses bastante escusos.

No século XX, Egon Schile foi posto na cadeia por imoralidade: amou e desenhou mulheres nuas bastante jovens. Em plena era pós-revolução sexual, houve passeata das mães francesas contra a exibição no Museu DŽOrsay, de Paris, da vagina pintada em A origem do mundo por Gustave Courbet.

Aristóteles, diferente de Platão, até aceitou que alguns indivíduos pudessem nascer com a demoníaca vontade de serem artistas. Mas, claro, se os mesmos servissem à moralidade dominante. Fazer música? Sim, desde que seja para enobrecer e animar a marcha dos soldados gregos. Como posteriormente, na Rússia stalinista, poetas e artistas deveriam louvar as benesses do sistema comunista. Ou isso ou a perseguição e a morte. Maiakovski, genial poeta russo, foi obrigado a fazer poemas idiotas sobre planos quinquenais da economia russa. O que resta de aproveitável em sua obra são os angustiantes versos sobre o amor e a dor do amor.

Agora temos o disparate de ver a obra Bandeira branca, de Nuno Ramos, ser desfeita na 29ª Bienal de São Paulo. Como não houve defesa, passeatas, manifestos ou abaixo-assinados do mundo artístico contra a decisão, o próprio Nuno Ramos fez sua defesa pública no caderno "Ilustríssima" da Folha de São Paulo do último dia 17 [conteúdo fechado para assinantes].

O incômodo gerado pela obra se deve à presença de três urubus que ali vivem enjaulados. Não sendo animais provindos de habitat natural, mas já vivendo em cativeiro, surpreende a burrice de quem, por pressão midiática (midiota), tenha metido a colher onde não tem conhecimento de causa.

No seu artigo, Nuno Ramos se mostra impressionado com "a absoluta incapacidade, digamos, interpretativa de quem me atacou, a recusa de ver outra coisa, de relacionar o sentimento de adesão ou de repulsa que meu trabalho tenha causado com qualquer coisa proposta por ele, em suma, a desfaçatez com que foi usado como trampolim para um discurso já pronto, anterior a ele, que via nele apenas uma possibilidade de irradiação".

E ele tem razão, pois discursos prontos foram os que geraram as fogueiras da Inquisição, que calaram Galileu e mataram Giordano Bruno, que levaram judeus a campos de extermínio, que têm matado homossexuais, perseguido e excluído negros da sociedade.

A obra de Nuno Ramos e a razão de uso dos urubus no trabalho apresentado à Bienal não entrou em questão, porque não era a questão que interessava aos supostos ambientalistas de plantão "com suas verdades perfeitas".

A desfaçatez se justifica em sua improbidade, pois, como disse o próprio artista, o trabalho foi "tomado de modo absolutamente opaco e literal, espécie de cadáver sem significação. Para que possa ser veículo estrito de discursos e de grupos, sem que utilize seus recursos, digamos, naturais (sedução, desejo, ambivalência), o trabalho de arte tem de estar, de fato, desde o início definitivamente morto. Daí, creio, a ferocidade com que fui atacado ― uma espécie de operação higiênica preventiva, para impedir que qualquer germe de espanto, ambiguidade, beleza, estupor, pudesse aparecer, desqualificando o desejado consenso".

Em debate na Bienal sobre a relação entre arte e ética, Vânia Rall, pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre a Intolerância da USP, diz: "o que incomoda é o fato de o artista estar se referindo às aves como se elas fossem objetos componentes de sua obra. Como se elas fossem autômatos a serviço de sua arte. E é isso que incomoda".

De forma alguma foi esse o tratamento dado aos animais, pois até uma iluminação artificial foi providenciada para eles, e Nuno Ramos, justamente, usa animais por considerá-los animais e não objetos. Afinal, com um animal empalhado ele resolveria com menos trabalho a montagem da obra, mas o procedimento seria ineficaz ao seu propósito. Outra coisa que vale lembrar é que esses animais nasceram em cativeiro, jamais foram silvestres.

Mas temos que concordar com Vânia Rall ao dizer que existe ainda entre os homens um "ranço antropocêntrico" que nos faz tratar os animais como seres inferiores e, por isso, passíveis de serem maltratados. Não é o caso de Nuno Ramos, deixe-se claro.

Diz Vania Rall: "Existem alguns direitos e prerrogativas que, em um mundo justo, deveriam ser concedidos a todos os seres vivos. Esses direitos seriam o direito de liberdade, o direito à vida, e o direito à integridade física e psíquica. (...) No entanto, por causa de um ranço antropocêntrico que persiste inclusive no mundo da arte até o momento, esses direitos são abertamente negados aos animais".

O artista não contraria o que se disse acima, pois agiu de forma totalmente cuidadosa na sua relação obra/presença de urubus. No fundo, a questão fantasmagórica que ronda a proibição do uso de animas em obras de arte é de outra natureza. Diz respeito ao temor que a liberdade intrínseca à obra de arte sempre causou e causa, seja nos moralistas de ontem, seja nos politicamente corretos de hoje (minorias e maiorias). Nuno Ramos mata a charada na sua defesa e expõe o nervo aberto do sentido que a arte sempre deveria ter:

"A arte talvez seja a última experiência universalizante, ou ao menos não simétrica à discursividade do mundo, e acho que tende a ser cada vez mais atacada, toda vez que discrepar, como soberba e como arbítrio. Mas penso que é isso mesmo que ela deve manter: sua soberba e seu arbítrio, para que possa continuar criando."

Encerro parafraseando o próprio artista, dizendo: será que vocês não veem que o que estão vendo NÃO é o que estão vendo?

Jardel Dias Cavalcanti
Londrina, 26/10/2010

 

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