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Terça-feira, 16/11/2010 Cheiro de papel podre Carlos Goetteanuer "Livro é fetiche". É o que tenho ouvido por aí há algum tempo, principalmente após o lançamento do Kindle, seguido pela popularização dos leitores eletrônicos. Esse fetichismo, associado a uma necessidade de contato físico com o objeto da adoração, foi apontado como uma das razões potenciais para o insucesso dos leitores eletrônicos. Na cabeça dos resistentes à modernidade, o livro é mais que um acumulado de folhas de papel. Trata-se de um objeto de adoração, merecedor de carinho, amor e afago com a ponta dos dedos. Essa tendência ganhou sua maior representação ano passado, com uma declaração de Pedro Herz, dono da mágica Livraria Cultura. Ao ser questionado sobre o futuro dos livros eletrônicos, o empresário afirmou que os leitores consideravam o "cheiro do livro de papel" algo insubstituível. A relação odorífera com os livros seria tão poderosa que tornaria questionável o sucesso imediato dos modernosos leitores eletrônicos. Insatisfeito com o falatório alheio, resolvi procurar a definição de fetiche na Wikipédia em uma fonte confiável, para ver se havia o harmonia entre meus sentimentos é a máxima do fetichismo literário. O Dicionário Aurélio nos explica que fetiche é um "objeto animado ou inanimado, feito pelo homem ou produzido pela natureza, ao qual se atribui poder sobrenatural e se presta culto; ídolo, manipanço". Impossível não se encantar com o texto da definição. E, confesso, para mim, livro é, sim, um objeto de culto. Encaro a literatura, e com ela os livros, quase como uma religião. Na estante, meu altar particular, tenho várias imagens sacras, como São Machado de Assis e São Italo Calvino. E, se há um espaço que é para mim uma catedral, tal lugar é uma boa livraria sortida de títulos desejados. Entre as estantes estão reunidas muitos de meus deuses, aprisionados em folhas de papel. Com alguns Reais, sempre mais do que eu possuo, eu posso capturar a bênção entidades santas e levar para casa um pouco de sua divindade. Portanto, enxergo em um livro um poder realmente sobrenatural. Mas, recentemente, acabei cedendo à tentação do coisa-ruim e cometi um pecado que, em outros tempos, garantir-me-ia o comparecimento ao incêndio de uma fogueira portentosa, com direito de visão pelo lado de dentro. Decidi comprar um leitor eletrônico. A escolha não foi fácil, principalmente porque em nossas terras brasileiras o assunto ainda engatinha. Primeiro, estabeleci dois critérios, a qualidade da leitura e a disponibilidade de livros em português. Excluí o leitor da Sony, que, apesar de possuir touchscreen é muito reflexivo. Depois, nadei contra a corrente majoritária e ignorei o Kindle, queridinho da atualidade. O aparelho, apesar de possuir a gigante Amazon por trás, ainda tem poucos títulos em português e é incompatível com a maioria dos livros fornecidos pelas poucas livrarias eletrônicas nacionais e com o formato epub, no qual é possível encontrar centenas (talvez milhares) de títulos de domínio público totalmente de graça. Optei, assim, pelo Nook, leitor eletrônico da Barnes & Noble, que, apesar de quase ignorado no Brasil, pode ser uma boa opção para quem consegue realizar compras no exterior. Após a decisão e, com a tradicional ajuda do amigo-que-vai-para-fora, consegui comprar meu leitor eletrônico. No entanto, minha estreia na leitura eletrônica deu-se de maneira acidental. Os deuses da literatura me fizeram perder o exemplar do livro de papel que estava lendo e tive que recomprar o título, oportunamente, no formato eletrônico. Mas, ainda que abrupta, a transição foi agradável. Após alguns minutos de leitura do papel eletrônico, eu já me sentia familiar com aparelho e sequer me tocava que, um dia antes, ainda lia a versão de papel da mesma obra. Para trocar de página, basta apertar um botão e a folha de papel que estava na sua frente, como que por mágica, fica meio borrada e muda seu conteúdo. Certamente, trata-se de um objeto produzido por forças malignas, para emular um livro com perfeição e afastar os literatos de seu objeto verdadeiro de adoração. Verdade que nem tudo são flores. Vez ou outra um reflexo incomoda um pouco e, para quem, como eu, cultiva o hábito exótico de leitura em penumbra, a falta de um contraste melhor pode incomodar. O reduzido tamanho da tela não chega a ser um problema para quem está acostumado a ler edições de bolso. Por outro lado, os ganhos são incalculáveis. O número de obras de qualidade disponíveis para domínio público é tão grande que já justifica o investimento no eReader. Basta pensar quanto custa, por exemplo, uma coleção de obras completas de Machado de Assis e lembrar que você pode pegar tudo absolutamente de graça na Internet. Sempre haverá quem goste de carregar estantes nas costas a cada mudança de endereço. Há até quem veja nisso uma demonstração de sua fé. Eles me lembram aqueles que frequentam as igrejas para expiar os pecados da omissão literária. Mas, ao fim, esquecem que o Evangelho é uma ideia, não um livro ou mesmo um texto. Todavia, eu me tornei um herege a partir do momento que vi a telinha de papel eletrônico. E fetichismo por fetichismo, meu objeto eletrônico é muito mais mágico e cheio de feitiços. Para quem ainda espera sentir o odor de livro por muito tempo, vale um recado. Isso é só cheiro de papel em decomposição. Nota do Editor Carlos Goetteanuer mantém o blog Estado Crônico. Carlos Goetteanuer |
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