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Terça-feira, 30/11/2010 Roçando a poesia de Alberto Beuttenmüller Jardel Dias Cavalcanti LIANA TIMM© (http://timm.art.br/) A pele da palavra é o nome do livro de poesias que Alberto Beuttenmüller publicou este ano pela Editora Aquariana, de São Paulo. Além dos poemas, o livro traz uma série de textos críticos escritos por Benedito Nunes, Nelly Novaes Coelho, Helio Pólvora e Mário Chamie. Ainda somos presenteados com uma belíssima narrativa de dois encontros entre o poeta e ninguém menos que Jorge Luis Borges ― o primeiro, no Brasil, em 1970, e o segundo, na Argentina, em 1977. O livro reúne poemas datados de 1963 até 2009. Sentimos falta de uma explicação numa apresentação sobre o sentido da divisão do livro em várias partes, com poemas de datas diversas e títulos diversos como, por exemplo, "Parte 1 ― Poemas em progresso, 1991-2009", "A pele da palavra, opus 1, 1991-2009", "Cidades, 1963-2007", "Sociedades, 1980-2007", "Inéditos, 1963-2007" etc. Deduzimos dessa colocação dos capítulos que são poemas selecionados de outras obras, agora reunidos nesta edição de 2010, contando ainda com a publicação de inéditos de várias épocas, pois a data inicial dos referidos poemas é de 1963. Benedito Nunes situa a poesia de Beuttenmüller dentro de uma prática que "se afirma insuflando na linguagem comum, sob a continuidade aparentemente arrítmica da prosa, uma nova retórica, que valorize, ao lado da exploração interna das palavras, os nexos sintáticos". E num jogo interessante, lúdico, sua poesia realmente se faz nessa brincadeira de nexos, que busca significar e insignificar, multiplicar sentidos ou esvaziá-los quando necessário, como nos seguintes versos: "Como cobra despela-se/ In-signi-fica-se,/ como apelo e atropelo". Essa liberdade, primeiro de se fazer rítmica, depois livre das regras lógicas, acrescenta ao poema a mesma velocidade do mundo, suas contradições, seus agenciamentos desordenados, seu bric-a-brac, seu jogo de linguagem, suas formas-valise, sua verbo-visualidade (como no poema "Mulher", que tem o formato plástico de um santo). Lendo assim os poemas, eles nos maravilham de dois pontos de vista: sua forma entrecortada, como as paisagens/arquiteturas das cidades modernas, e por sua musicalidade, também, entrecortada, como as guitarras sensuais do rock ou as improvisações nervosas do jazz. O delírio erótico é outro elemento constante nos poemas, que se faz presente em jogos de palavras, quase verdadeiros cruzamentos dos sexos: "às vezes, pele por pele, às vezes sexo por nexo (...) por entre as pernas/ da palavra amor/ a pele expele/ sexo na palavra". Essa dimensão do erótico pode ser deliciado no poema "Milão", que reproduzo abaixo, onde a mistura das partes da cidade, seu sol, calor e arquitetura levam seus habitantes à cópula geradora da vida. "Milão Entre as coxas do verão: Milão Nas ruas nuas Seios a romper blusas de sedas Olhares eróticos na tarde Na santidade do Duomo Seios e sexos em cio O verão de Milão É pai de muita gente" Mesmo em poemas tão valises, onde as palavras são agrupadas em seu sentido sonoro, Eros não deixa de participar, inclusive alocando visualidade e sonoridade. É o caso, por exemplo, do poema "Avalovara", dedicado a, evidentemente, Osman Lins. Veja trecho: "Aveverso Avesexo Falopalavra Avefalo Avesseixo" Esse apreço pela forma visual do poema e seu sentido pode ser visto no poema "Barca de Niterói", que também traz a denúncia da alienação da vida sob o capitalismo. O poema, do qual reproduziremos apenas trechos, tem o formato visual das famosas barcas que fazem o percurso Rio-Niterói (aqui não reproduzimos o formato). "Barca de Niterói O que mais dói na Barca de Niterói? Grand moinho dentado A sanguessugar o mar O que nos rói na barca de Niterói? O menino sem sapato Ou aquele outro sem pé? (...) Funcionários funcionando Como fuças funcionais Entre bancos e abraços Mastigando o tempo De nada ter que fazer (...) Tudo ficou do outro lado Como nos corrói a barca de Niterói Dos olhos e mãos Rolam ampulhetas cansadas Cansadas de ser cansadas Na barca de Niterói" Um poema bastante forte dentro do livro é "Katatruz", espécie de máquina devoradora, que percebe e consome, sob o silêncio da madrugada, as vidas, paixões, injustiças, contradições, amor, sonhos, desejos... enfim, a totalidade da qual é feita toda a vida humana. Espécie de catadora de lixo ou restos humanos "a máquina nos fere", espécie de "máquina maquiavélica", nos cata nos instantes de mentira, verdade, delírio, solidão, desprezo, desespero. As imagens construídas pelo poema são, por vezes, assustadoras, de uma máquina impiedosa a catar nossos dissabores, e pior, a revelá-los em nossa sina de amargurados seres que penam sobre a terra e sofrem sob a égide do Capital. Em alguns momentos somos tão parecidos com a própria "Katatruz" que sentimos seus braços mecânicos como nossos, sentimos sua voracidade como nossa, sentimos seu desejo destruidor como nosso. Há momentos de lirismo amoroso no livro, que justificam o seu título, nos quais o prazer nos toca pelo jogo de aliterações das palavras e por seu significado amoroso imediato. É o caso do poema "Poema da amada": "Navego, como se em voo cego, a bela paisagem do teu corpo alço-me por entre montes e vales entre grutas florestas vagueiam meus lábios vulgares pelo pulsar anseio de teus seios onde perco meu mapa e minha rota: na laguna úmida do teu plexo, na solidão do teu sol solitário. Alço-me pela montanha do teu púbis em plena floresta negra adentro umedeço-me em teus grandes lábios sacio a minha sede nesse teu oásis de teu fremente corpo só miragem com minhas impudicas mãos impunes tateio toda tua geografia mas nada descubro nesse corpo-fogo porque tu mulher mais que amada tu és mais que o obscuro segredo do insano clarão do meu desejo. O que é constante na poesia de Beuttenmüller é a ideia da construção de uma possibilidade da liberdade de pensar o mundo se encontrar com a possibilidade da liberdade da língua traçar nexos verbais-sonoros coerentes com essa reflexão. Sua poesia é o resultado, portanto, de uma reflexão de mão dupla, entre linguagem e mundo, que se realiza de forma contundente, por vezes divertida, mas no mais das vezes ácida, irônica e incômoda. Jardel Dias Cavalcanti |
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