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Quarta-feira, 19/12/2001
Reflexões a respeito de uma poça dīágua
Paulo Polzonoff Jr

Só o acaso estende os braços
a quem procura abrigo e proteção

(Renato Russo)

Sei que devo ter começado este texto à esquerda (no sentido católico) já, decepcionando alguns dos meus leitores por citar Renato Russo, o poeteco do rock brasiliense. Bem, apesar de achar que os compositores que se atrevem a poetas só conseguem ser medíocres nas duas coisas, em geral, tenho de me curvar quando vejo um verso bonito. E este verso aí em cima, que consta na música Há Tempos, vem a calhar neste momento. Que sirva-me de epígrafe, pois.

Vou a pé de casa para o trabalho e do trabalho para casa todos os dias. É uma caminhada de meia hora, ao menos. E, talvez, seja a parte mais interessante do dia. Apesar de andar meio distante do mundo ultimamente, não suportando me sentar numa mesa com mais de duas pessoas para conversar sobre qualquer coisa, gosto de observar as pessoas na rua. Aglomerações, pois, me fazem bem. O indivíduo destituído de si, envolto nesta abstração absurda chamada sociedade. Admiro isso com certo nojo, porque para mim o que importa é o indivíduo e somente o indivíduo, e quando eles resolvem tirar a individualidade de você... Bem, o fato é que, andando, eu também acabo virando um ser-social, privado de minha condição individual. Enojo-me, pois, ao andar pelas ruas, mas é um nojo bom de se sentir — coisa incompreensível, bem sei.

De qualquer modo, vou vendo as meninas indo para o colégio, com aquele sentimento bom dos adolescentes, que acham que as amizades são para sempre. Tudo é para sempre. Riem de tudo, do sinal que muda de verde para amarelo e verde, da roupa de um hippie que tenta lhes vender brincos horríveis, do pipoqueiro e até de mim, que não tenho absolutamente nada de especial. Vou vendo as velhinhas, carolas, e me pergunto há quanto tempo elas não fazem sexo, será que há mais ou menos tempo que eu, e imagino como deve ser a velhice e a sexualidade na velhice, até que um guarda me interpela e ameaça me prender por atentado ao pudor ou à boa conduta do pensamento judaico-cristão nas ruas de Curitiba. Vou vendo os trabalhadores que, enquanto eu vou para o trabalho, já estão na segunda hora de sua jornada: cabeleireiros, carregadores de água mineral (em bicicletas assassinas), pedreiros, motoristas de táxi; e penso que estes distintos anônimos, cujos nomes não estarão em nenhum cânone jamais, ganham menos do que eu, em sua maioria, trabalham mais, têm filhos para sustentar, enfim, responsabilidades que ainda me são estranhas. É claro que, a esta hora, já estou me sentindo culpado por reclamar do meu salário e da minha falta de tempo para o ócio. Tudo isso e outras coisas impublicáveis neste curto espaço penso até chegar ao fim da Mariano Torres, ou seja, por 1 km.

Aí eu chego no ponto-crucial tanto do trajeto quanto deste texto: o Passeio Público. Trata-se de um parque com cerca de cem anos, que é a idade de verdade de Curitiba. Explico: Curitiba tem trezentos e poucos anos, mas só no papel. No início do século 20, Curitiba era uma pequena vila. O Passeio Público foi criado nesta época para regular as cheias que inundavam um grande brejo no centro da cidade. Uma das atrações mais interessantes do Passeio, por isso, é o lago muito verde, que muitos acham morto, mas que está entupido de peixes e de tartarugas. É, tartarugas, que disputam com os peixes e com os patos as pipocas que as crianças jogam no lago. Entra-se no Passeio e dá-se de cara com este lago. No centro deste lago há duas ilhotas. A primeira tem macacos ariscos, marrons. Na outra a macacos pretos, acho que se chamam macacos-prego, mas não tenho certeza. Gosto de parar ali e ficar olhando os macacos. Passo pelas tartarugas e depois entro numa alameda cercada de árvores dos mais diferentes tipos. Eu não entendo nada de botânica, mas vejo ali palmeiras e carvalhos, além de outras espécies, cobertas de bromélias. Do lado esquerdo desta alameda também há uma ilhota, ligada ao “continente” por uma ponte pênsil. Naquela ilhota, há uns bons dez anos, vivia um casal de... pingüins. No meio de uma metrópole como Curitiba, num país tropical, vivia um casal de simpáticos pingüins. Pode?

Foi nesta alameda que atentei pela primeira vez para ela: a poça dīágua. Em Curitiba chove o tempo todo. É incrível que não tenhamos vidado sapos ainda. Por isso há sempre poças dīágua nas ruas. A maioria das pessoas, acho, nem olha para as poças. Para mim, que estou acostumado a andar olhando para o chão, desde o dia em que, em frente às Lojas Americanas, achei R$ 50, as poças são uma paisagem constante. E o que pode pensar um homem a respeito de uma poça dīágua? Elas são espelhos do Universo. Não pensem que enlouqueci. Nem estou querendo bancar algum tipo de poeta. Simplesmente adoro poças dīágua porque elas me fazem pensar em abismos. Eu as contorno, olhando o céu refletido no chão, e me imaginando caindo dentro da poça e a poça se abrindo e o céu tornando-se inalcançável. Uma queda eterna. Um inferno. Contorno as poças dīágua como um abismo que ao mesmo tempo em que temo, desejo. Não importa o céu, se nublado ou azul: as poças são um atalho para o divino em mim.

Por que estou falando isso? Bem, porque eu descobri, esta semana, que há algo de muito esotérico neste passeio pelo Passeio (passeio pelo passeio pelo passeio pelo passeio...). Calma, não estou dando uma guinada para os lados do Quiroga e, em verdade, estou longe de dar uma guinada mínima até mesmo em direção ao esoterismo sério, cujos debates tenho acompanhado de longe, com admiração e, não posso negar, certo tédio. Há algo de muito especulativo nesta alameda, na lembrança dos pingüins, nos macacos e nas tartarugas. Até mesmo nas prostitutas gordas e velhas que infestam o Passeio como se fossem apenas mais um adendo exótico naquela fauna central há algo de esotérico. Algo de divino. Algo de transcendente.

Ao contornar as poças dīágua, contorno também a tendência (provavelmente russa) ao intelectualismo espiritual que em mim habita. Não cair naquele abismo é, no sentido inverso, não deixar que meu raciocínio levite muito. E isso serve para outras coisas, como o amor. Bem, mas de amor eu falarei daqui a umas duas ou três semanas, que o amor exige muito mais reflexão do que uma mera poça dīágua.

Ensaiei este texto durante a semana inteira, andando, principalmente — advinha! — no Passeio. E hoje eu tenho de contar a vocês que tenho dois amigos no Passeio. É que o parque tem um mini-zoológico e, indo pela alameda, na ida, passo por um viveiro de pássaros. Meu primeiro amigo, na verdade, é um casal. Um casal de tucanos-tocos. Não sei o que quer dizer este “toco”, mas eu adoro aqueles tucanos-tocos. São bichos simpaticíssimos, que emitem um som estranho. Já ouviram o canto do tucano? Quero dizer, não é um canto, exatamente. É quase um... relincho (?!). Ele bate rapidamente o bico, num som ameaçador, mas lindo. E os bicos, ah, os bicos, com aquele amarelo que é o puro contraste com a cidade que os acolheu. Curitiba é cinza. Eu sou um curitibano nato, por este prisma, já que enxergo a vida em preto-e-branco.

O outro meu amigo é um pelicano, que visito na volta para casa. Que bicho louco. Branco, quase rosa, neste quesito ele se parece com um flamingo. É gordo e pesado e desajeitado. Meu pelicano não tem nome e é um bicho ferocíssimo. Eu chego perto dele para dar oi e ele vem com aquela papada amarela e me grita um “sai daqui seu filho da mãe!”. Já ouviram o som de um pelicano? É horrível. Parece o escarrar de um velho. Desculpem-me por este texto atípico, em que não falo nem de literatura nem de cinema nem de nenhum assunto cultural, como faço desde que comecei a escrever para este site. É que a poça dīágua se sobrepôs, esta semana. Espero que vocês, depois de lerem este texto, jamais enfiem o pé numa poça dīágua, afinal, podem cair no universo-inverso e, além disso, podem acabar como eu nesta noite: com uma pilha de cigarros, uma tristeza inexplicável, um sorriso menos ininteligível ainda e elucubrações filosóficas as mais superficiais possíveis, de fazer corar qualquer estudante de filosofia.

E eu estava terminando este texto sem explicar ao certo aquela epígrafe, né? Vou ser sucinto: acho extremamente forte a idéia de que o acaso, exatamente aquilo que a gente não controla de modo algum, possa ser nossa única esperança de abrigo e proteção. Escutei esta música (o termo não é exato. Mas eu não tenho mais certeza quanto a termos) esta semana e pensei “dane-se que eu não suporto rock; dane-se que o Renato Russo era um compositor que se pretendia a poeta, o que me irritava muito; dane-se que algumas pessoas podem me achar o maior idiota por usar um versinho de roquinho como epígrafe”. Aí está: porque só o acaso me estendeu os braços quando procurei abrigo e proteção.

Ah, este versinho é acompanhado por uma interjeição curiosa e em desuso ultimamente: meu amor!

Paulo Polzonoff Jr
Rio de Janeiro, 19/12/2001

 

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