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Quinta-feira, 9/12/2010
WikiLeaks, o melhor de 2010
Vicente Escudero



Quantos furos jornalísticos da última década foram capazes de tornar seus autores inimigos declarados da OTAN? Qual jornal teve seu site atacado por hackers antes de divulgar uma matéria que causaria abalos nas relações diplomáticas dos Estados Unidos e foi ameaçado pelo seu Procurador-Geral de ser processado por infringir o Espionage Act de 1917, que pune a obtenção, troca ou publicação de "qualquer informação relacionada à segurança nacional, com a intenção declarada ou não de causar prejuízo aos Estados Unidos"?

Nenhum. Segundo o governo dos Estados Unidos e a OTAN, não faz parte da imprensa esse pessoal de paradeiro desconhecido, que trabalha editando e publicando na internet informações de fontes confidenciais do mundo todo, escondido dentro de um bunker num país qualquer. Tratando-os como espiões que roubam informações confidenciais apenas para prejudicar terceiros, sem finalidade jornalística e com seu fundador preso depois de ter sido procurado pela Interpol, os maiores prejudicados pela divulgação dos diários da guerra suja no Iraque e dos documentos diplomáticos americanos sobre diversos países tentam de todas as formas desqualificar a competência do WikiLeaks. E que competência! Afinal, sem num curto período de existência o site chegou a cancelar o recebimento de documentos devido ao grande acúmulo de material vindo de fontes do mundo todo, enquanto o resto da imprensa cobria apenas o dia a dia dos escândalos revelados pelo site, a impressão que resta é a de que existe uma certa desconfiança das fontes que buscam o WikiLeaks com a imprensa tradicional.

Sob o ponto de vista dos prejudicados pelos vazamentos, os argumentos que tornam o WikiLeaks um inimigo são quase os mesmos utilizados pelos países rivais durante a Guerra Fria. Argumenta-se que as informações reveladas pelo site colocariam em risco a vida de muitas pessoas, os documentos publicados seriam sensíveis, imprescindíveis para a defesa nacional dos autores e seu caráter sigiloso tornaria criminosa a divulgação. É fácil perceber a fragilidade desta estratégia que se apoia num tripé tão fraco quanto os sistemas de segurança onde estavam armazenados os quatrocentos mil documentos sobre a Guerra do Iraque e os duzentos e cinquenta mil relatórios e telegramas do corpo diplomático americano. Os diários da Guerra do Iraque revelaram diversos abusos do exército e das forças policiais locais, como a conivência dos soldados com a tortura de suspeitos pelos policiais iraquianos e a execução sumária de civis. Vidas em risco? Os direitos humanos devem sempre ceder em estados de exceção? E o que dizer da publicação dos documentos diplomáticos? Uma análise superficial da pequena parcela que foi publicada até agora revela o descompasso entre a política externa americana e os fatos narrados pelos seus correspondentes em terras estrangeiras. Entre eles, destacam-se os pedidos nem um pouco republicanos de Hillary Clinton para que fossem coletados dados particulares de oficiais da ONU, como números de cartões de crédito e dados biométricos, além das informações precisas sobre a situação no Oriente Médio, como a instabilidade do corrupto governo civil paquistanês, pressionado pelo avanço dos militares e relutante com o auxílio do exército americano no combate a Al Qaeda nas regiões tribais do país.

É inevitável que no processamento de um volume tão grande de documentos ocorram falhas, como a revelação dos nomes de alguns afegãos que colaboraram com o exército americano, presentes nos diários da fracassada guerra contra o terrorismo. Entretanto, o resultado final da atuação do WikiLeaks é muito positivo: as dificuldades enormes da Guerra do Iraque e os fatos relatados pelos representantes oficiais do governo americano, que orientam suas posturas políticas, vieram à tona e poderão salvar muitas vidas se desencadearem a revisão da política externa do país. Essa montanha de erros tornada pública mancha as reputações em vez de colocar vidas em risco. A resistência das autoridades envolvidas em negar este fato só aumenta a evidência da falta de ética e espírito público na relação que mantêm com o poder. E não existe democracia que não seja formada por uma maioria defensora destes valores. A publicação de todos os documentos pelo site esvaziou a pouca reserva moral que ainda havia em Washington.

Os documentos diplomáticos publicados são o melhor retrato, o mais preciso da atual influência americana no mundo. Além do incrível valor histórico, alguns relatórios e telegramas têm um conteúdo quase literário, com análises detalhadas de eventos e pessoas dignas de um bom romance. Um exemplo irretocável desta qualidade é o relatório elaborado pelo diplomata americano na Rússia, William Burns, intitulado "Um casamento no Cáucaso":

" ¶17. (C) Após os fogos de artifício, os músicos começaram a tocar uma lezginka no pátio descoberto e um grupo de duas meninas e três meninos ― um deles com no máximo seis anos ― apresentou versões acrobáticas da dança. Primeiro Gadzhi se juntou a eles e, em seguida Ramzan, que dançou desajeitado com sua pistola banhada a ouro enfiada por baixo da parte de trás da cintura da calça jeans (um convidado mais tarde salientou que esse ouro impediria a utilização da arma, mas sorriu cinicamente e disse que Ramzan, de qualquer forma, não poderia dispará-la).

Ambos, Gadzhi e Ramzan, jogaram várias notas de cem dólares sobre as crianças enquanto dançavam, provavelmente, os dançarinos recolheram mais de cinco mil dólares do chão. Gadzhi disse-nos mais tarde que Ramzan trouxe "cinco quilos em barras de ouro", como presente de casamento para o casal feliz. Depois da dança e um rápido passeio pelas instalações, Ramzan e seu exército se dirigiram de volta para a Chechênia. Nós perguntamos por que Ramzan não passaria a noite em Makhachkala: 'Ramzan nunca passa a noite em lugar nenhum' ― respodenram.

¶18. (C) Depois de Ramzan deixar o local em disparada, o jantar e as bebidas ― especialmente as últimas ― continuaram. Um coronel Avar FSB sentado ao nosso lado, desmaiado de tanto beber, estava muito ofendido por não permitirmos que ele misturasse conhaque ao nosso vinho 'É praticamente a mesma coisa', ele insistiu, até um general russo FSB, sentado do outro lado da mesa, pedir para que parasse. Entretanto, nós estávamos dispostos a deixar o coronel falando: ele é o chefe da unidade de combate ao terrorismo no Daguestão, e Gadhzi nos contou que todos os inscritos nessa unidade haviam sido assassinados por extremistas. Ficamos mais preocupados quando um amigo do coronel que havia lutado com ele na Guerra do Afeganistão, Reitor da Faculdade de Direito do Daguestão e muito bêbado para conseguir se sentar, sacou sua pistola automática e perguntou se alguém precisava de proteção. Nesse momento, Gadzhi e seus companheiros apareceram e carregaram o reitor entre os ombros, deixando-nos fora de seu alcance.
"

O resultado desse banquete de informações ainda é incerto. Considerada a vagarosa edição e publicação dos documentos diplomáticos pelo WikiLeaks, a perspectiva mais otimista é a de que o governo americano ainda vai roer as unhas pelo menos durante mais seis meses. Por enquanto, a maior reação às tentativas de calar o site veio da comunidade de hackers habitando o 4chan, chamada Anonymous, que deflagrou uma guerra virtual contra todos os envolvidos nas tentativas de censura. Enquanto você acompanha os desdobramentos iniciais da primeira guerra mundial da internet, pode ouvir informações direto das trincheiras, aqui.

Vicente Escudero
Campinas, 9/12/2010

 

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