|
Sexta-feira, 21/1/2011 É possível conquistar alguém pela escrita? Ana Elisa Ribeiro Foi durante a leitura de um livro de Ricardo Piglia que essa pergunta me intrigou. Era uma leitura de férias, depois de meses paquerando aquele livro em cima da mesa. Comprei o volume numa loja depois de tempos com aquele título na cabeça. Por sua vez, O último leitor havia sido sugestão de alguém ou dica retirada de alguma revista que andei lendo. Uma coisa puxou a outra e lá estava eu, sentada na cama, de costas para o Sol, lendo Piglia. O que ele dizia era que, sim, é possível conquistar alguém por meio da escrita. A letra, a palavra, o discurso... amoroso, ou não. O debate, as ideias, a inteligência. Isso são porções de uma paquera. E o texto de Piglia se baseava numa questão vivida por Kafka, seria ele? Sim, o diálogo dele com o amigo Max Brod. Seria possível conquistar uma mulher tendo a escrita como intermediária? Interface, veículo, canal, que nome isso tenha. A moça era Felice, um grande amor de Kafka, vivido na escrita, pela escrita, sem interrupções. De outro lado, a lamparina. Quem escreve sob a luz da lamparina hoje? O abajur, o candelabro, o lustre. Cá estou eu sob a luz fria (mais econômica). O escritor sustentável. Este é meu personagem. Kafka queria apenas saber se a vida conjugal poderia, por algum momento, ser conciliada com a vida de escritor. O grande problema são as interrupções. Como é possível escrever uma obra, se se é interrompido a todo instante? Chamados, pedidos, socorros, reclamações, lamentos, lamúrias, carências, "me ajude", "venha ver", "venha ouvir", "olha só", "amor!". Quem escreve algo a par dessa sabotagem? Claro, amorosa, mas sabotagem. Quem entende a concentração de um escritor em ato? A escrita pode ser análoga ao mitológico canto da sereia. Quem não leu as aventuras de Ulisses (Odisseu) que leia. A escrita cria personagens, ficções, protagonistas e antagonistas, inclusive em cartas e e-mails. A escrita cria avatares. Sim, novas identidades sob as quais muitos vivemos. Aquelas aulas sobre o narrador, sobre o eu lírico, indecifráveis... não eram mero delírio de professores loucos por provas bestas. Os avatares são construções do discurso. E eles seduzem não apenas os outros, os leitores, com quem se interage, mas costumam nos seduzir a nós, que os criamos e neles cremos, neles vivemos, inclusive sendo, neles, muito mais do que realmente somos (ou ao menos diferentes). As simpatias, os escrúpulos, o tom e as memórias narradas de um avatar (personagem) são, em grande medida, romances e ficções. Não raro eu mandava cartas. Coleciono ainda algumas, as que restaram dos diálogos que emendei sem interrupções. Nem todas geraram avatares muito diversos de mim, mas isso não foi incomum. O que podem fazer os e-mails? Unir e desunir. O que podem fazer os diálogos virtuais nos chats? Nos microblogs? Tudo. Contam histórias inteiras, nem sempre verdadeiras. E lá vem o último leitor criar ficções em torno de avatares. Tenho certeza de que Kafka conquistou Felice por meio de sua escrita. E ela a ele. Quem escreve gosta de respostas. Há então um duelo de textos, uma esgrima intelectual que passa a contar uma história. Não são poucas as pessoas que se apaixonam por narradores. Não me lembro de muitas ocorrências, mas chorei pelo fim da narração de Riobaldo. Não era ele, não era Rosa, não eram eles, mas seu modo de escrever. Era Etienne, de Zola, que me parecia ter uma voz dura de quem me narrava aquelas histórias da mineração. Eu narrei, várias vezes, de um jeito que não sou eu. Nem sempre me reconheço nas narrativas que conto. Cada um, a seu modo, constrói um personagem que, às vezes, se confunde comigo. E era comum me chamarem pelo título de um dos meus livros, Perversa, inclusive esperando de mim que eu me vestisse como uma lenda. E nem bem era eu. Frequentemente, eu era conquistada pela inteligência dos outros. Em alguns casos, fui conquistada até o amor mesmo. Não apenas uma admiração de superfície, mas um gosto absurdo pelos textos de outrem. As distorções linguageiras de que o narrador/a pessoa era capaz, um virtuosismo que me empolgava. Não foi raro o texto vir antes das pessoas. E era uma espécie de cartão de visitas ou mesmo de presença diária. Uma imensa honra saber que eu inspirara algo. Maior presente do mundo. Ser personagem, ser musa, ser causa e consequência. Mesmo quando a motivação era ódio e delírio. Fricção, urgência sexual, quando eu li o texto do narrador em público e ele estava na plateia, não exatamente o narrador, mas o escritor. Sedução e provocação. Ao mesmo tempo, imenso incômodo ouvir meu texto em outra voz, nem sempre no ritmo que eu quis dar. Presente, alucinação ou desejo. A escrita continua lá e cá, entre a luz e os lampejos. Não se brinca com quem escreve bem. Não se troca carta ou e-mail com quem arremata prêmios apenas com lances de verbo. É risco, na certa. Ana Elisa Ribeiro |
|
|