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Quinta-feira, 27/1/2011 Teoria dos jogos perdidos Vicente Escudero Não me recordo de quando fui apresentado à criptografia, mas desconfio que nessa ocasião o conteúdo da mensagem escondida pela aplicação de diversos algoritmos era importante o bastante para tomar o tempo de seus pais matemáticos por noites a fio. Talvez eu também tenha relacionado a ideia de esconder uma mensagem ao caráter confidencial de seu conteúdo e, finalmente, a sua origem em algum órgão de espionagem, como num filme de suspense em que agentes secretos carregam segredos roubados e se comunicam através de códigos, evitando o vazamento de suas operações. Talvez essas expectativas não façam parte do mundo real, pois foi nesta frágil dimensão que surgiram os telegramas diplomáticos vazados a conta-gotas pelo WikiLeaks. De um lado estão as informações diplomáticas do país que possui como maior empregador de matemáticos um órgão público, a Agência Nacional de Segurança (NSA), famosa por ser muito maior do que a CIA e ninguém conhecer suas atividades. Do outro está um site formado por jornalistas e hackers que publica informações sensíveis de qualquer país. O resultado do confronto dessas forças revela a fragilidade do sistema de informações da maior potência militar do mundo, mesmo ainda não havendo a confirmação segura da autoria dos vazamentos pelo analista militar preso, Bradley Manning. Segundo Adrian Lamo, o hacker que delatou Bradley ao FBI e teria conversado com ele sobre os vazamentos em um chat, o analista fingiu que ouvia e cantava "Telephone", de Lady Gaga enquanto copiava as informações dos servidores do Exército em Bagdá, onde estava alojado. O analista ainda teria dito que a segurança era "vulnerável pra cacete... ninguém suspeitou de nada... =L meio triste... servidores fracos, logging fraco, segurança física fraca, contra inteligência fraca, rastreamento das operações inexistente... uma tempestade perfeita". Também esclareceu sua intenção em copiar os telegramas "e se eu estivesse mal intencionado?". Questionado sobre a possibilidade da venda das informações à Rússia e China, teria dito "as informações são públicas... deveriam circular livremente". Bradley pode ter sido ingênuo ao revelar a história, mas teve coragem para repetir a atitude de Daniel Ellsberg, outro analista militar que em 1969 vazou ao New York Times e ao Washington Post as informações confidenciais sobre a Guerra do Vietnã, ajudando a opinião pública a pressionar o governo contra a continuação de uma guerra perdida. Nesses mais de quarenta anos entre os vazamentos, a facilidade com que ocorreram revela a estagnação da filosofia de controle das informações sensíveis produzidas pela administração americana. Uma grande quantidade de documentos ainda é produzida com caráter confidencial e um número excessivo de pessoas tem acesso a eles. Estima-se que as informações vazadas pelo WikiLeaks estariam acessíveis a mais de quinhentos mil empregados do governo pelo mundo todo. A expansão da rede de informações confidenciais depois dos atentados de 11 de setembro de 2001 para permitir a rápida descoberta de potenciais ameaças ao país fracassou e, aparentemente, apenas facilita o fluxo para quem não deveria acessá-la. Além de diminuir o mito da capacidade de mobilização do poderio militar americano, o vazamento das informações confidenciais expôs a fragilidade da liberdade de imprensa nas democracias. As primeiras reações oficiais dos governos envolvidos, aliados e rivais dos Estados Unidos, democracias e ditaduras, foram desde a reprovação à publicação dos documentos até os calorosos pedidos de assassinato de Julian Assange pela CIA e execução de Bradley Manning. É incrível a elasticidade de certos valores quando aplicados em prejuízo aos seus defensores. Enquanto Assange era colocado no alvo da Justiça pelo crime de espionagem, o governo americano anunciava a escolha de Washington como sede para a Conferência de 2011 das Nações Unidas Sobre o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa. Poucos princípios são tão inerentes à democracia americana como o da liberdade de imprensa. Em momentos anteriores, quando as notícias entraram em conflito direto com os interesses do governo ou de políticos, a justiça do país tratou de colocar cada um em seu devido lugar e garantiu ao cidadão disposto a gastar alguns centavos o direito de saber o que estava sendo discutido nos corredores dos prédios das altas instâncias do governo. No caso dos papéis do Pentágono, repassados aos jornais por Daniel Ellsberg, num primeiro momento a justiça impediu a publicação apenas pelo New York Times. Entretanto, como a decisão alcançava apenas este jornal, o Washington Post decidiu corajosamente enfrentar o Procurador-Geral e publicou a documentação, não se rendendo às pressões da máquina pública até que a Suprema Corte decidisse a favor da liberdade de imprensa e colocasse uma pá de cal nas pretensões autoritárias do governo Nixon. A decisão, por 6 votos a 3, estabeleceu que o Espionage Act, a lei que impede a publicação de documentos confidenciais que possam causar perigo de dano grave e irreparável, só tem validade quando demonstrada de forma cabal o risco de prejuízo aos Estados Unidos na publicação dos documentos. Esta novela que parece não ter um fim próximo caminha para a desmoralização da administração de Obama. Desde o início da publicação dos documentos, o Presidente não se pronunciou sobre o assunto, deixando que o Procurador-Geral, membros de seu governo e do partido democrata tomassem a dianteira à frente das críticas ao site. Embora esta estratégia possa servir para acalmar os ânimos da oposição republicana a longo prazo, nada garante que no futuro próximo o Presidente não seja forçado a se pronunciar diante de novas revelações do WikiLeaks, num momento em que ele terá de lutar pelo seu partido ou para se reeleger. Aí já será tarde demais para entrar no jogo. Sem muitas opções, não é possível acreditar que ele sustente a liberdade do WikiLeaks durante a campanha presidencial. Cenário pior do que esse, só no frio do Alaska... Vicente Escudero |
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