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Terça-feira, 11/1/2011
Baudelaire, um pária genial (parte I)
Jardel Dias Cavalcanti

Baudelaire é o mais moderno de todos os poetas, trazendo para dentro de sua obra a crise que se instaura num mundo onde é impossível fazer conviver uma sensibilidade exacerbada (aristocrática) e a experiência de estar no âmago de uma civilização moderna (burguesa). Sua obra traduz e amplia essa crise, nos revelando o êxtase da imaginação, as dores da sensualidade, o grotesco dos desejos, o tédio e a riqueza da vida na mais moderna e cultural das capitais do mundo, Paris.

Inovando não só na poesia, onde criou, segundo Victor Hugo, "un nouveau frisson", Baudelaire também foi um exímio crítico de pintura, música e literatura, além de tradutor para o francês da obra do escritor Allan Poe, que considerava sua alma gêmea. Sua poesia influenciou a nova geração de poetas que despontou logo a seguir, como Rimbaud, Verlaine, Mallarmé, Valéry, para ficar apenas no século XIX. Importantes estudiosos da cultura se debruçaram sobre seu trabalho, como Walter Benjamim, Sartre, T. S. Eliot, Paul Valéry, Bernard-Henry Lévy, entre outros, sendo Baudelaire também um dos poetas mais estudados pela crítica literária acadêmica do mundo.

Para conhecer melhor a trajetória de Baudelaire, vale a pena ler a biografia escrita por Jean-Baptiste Baronian, traduzida agora para o português e publicada na coleção Biografias L&PM Pocket. É sobre este livro que trataremos na presente resenha.

A leitura dessa biografia é extremamente prazerosa sob dois pontos de vista: primeiro, os capítulos são pequenos, nada cansativos, e tratam diretamente de temas importantes na constituição da obra poética de Baudelaire e, segundo, porque tenta reconstituir ano a ano a vida do poeta nos fazendo ver não só a sua vida errante e boêmia (casos de amor, visitas a prostíbulos, consumo de haxixe, contaminação pela sífilis, criador e fugitivo de dívidas impagáveis, etc), mas os desdobramentos possíveis da vida cultural da época nos interesses específicos do escritor.

Baudelaire nasceu no bairro Sant-German, em Paris, no ano de 1821. Foi uma criança ansiosa e furiosamente imaginativa, um adolescente atormentado e tenso. Estas características por si só o afastariam na idade adulta do convívio normal, esperado pela família e pela sociedade como um todo, com uma vida regular, trabalho fixo, interesses comuns. A oposição a este universo pré-estabelecido não poderia deixar de levá-lo a se interessar justamente pela poesia, a mais marginal das artes.

Seu pai era Joseph-Fançois Baudelaire, homem estimado pela sua educação, descrição, elegância e reserva, sendo visto como um perfeito fidalgo, recomendado às pessoas de sociedade, como Madame Helvétius, cujo salão reuniu mentes fabulosas como Condillac, DŽAlambert, Diderot, Condorcet, Voltaire, Franklin. Colecionador de quadros, móveis trabalhados em mogno, estatuetas, além de pintor amador, preso aos requintes dos salões mundanos do século XVIII, Joseph-François aos 62 anos se casou com Caroline Dufays, então com 26 anos. O casamento foi o encontro entre o verdadeiro filho de um longo século de frivolidades eróticas e alegrias sentimentais (que produziu um pintor como Boucher), e a mocinha que descobre de um dia para o outro, o amor carnal e os caprichos de um velho, provocado na presença da jovem por idéias de luxúria e fantasias de libertinagem.

Desse casal nasce Charles Baudelaire, o menino que um dia se tornaria um dos grandes gênios da literatura. A influência aristocrática do pai parece ter sido gravada na alma de Baudelaire. Embora a repugnância do filho pelo pai velho seja uma realidade ("cheiro de velho, odores terríveis, nauseabundos, repugnantes, pútridos"), o mundo que o cerca interessa ao menino: uma casa onde se refugia, com objetos que atiçam a sua imaginação, sejam livros raros como a Enciclopédia de Diderot ou álbuns cheios de mapas de países distantes, sejam esculturas, vasos de porcelana japonesa, candelabros de cobre, desenhos em guache e pastel, que abrem sua mente à possibilidade de devaneios e criação de imagens fabulosas.

Com a morte do pai, o menino, órfão aos 5 anos, vê o afeto da mãe reservado apenas para si mesmo, não mais dividido com aquele velho. Mas o que parecia uma libertação, tornou-se uma desgraça para o sensível rapaz, pois possibilitou um novo casamento para sua mãe, agora com um militar, o general Jacques Aupick, oportunista e ambicioso por subir na carreira militar, o oposto de Joseph-Fançois, diletante, letrado, sensível pintor de fim de semana. Para Baudelaire, Aupick tem apenas alguns interesses de severidade, obrigando-o a andar na linha, oprimindo-o, como a um de seus subordinados. A resposta do jovem ao general foi inicialmente a insubordinação, a resistência, a contrariedade às suas ordens e, depois, o ódio. "Menos por acreditar que Jacques Aupick lhe roubara o amor materno do que por ser incapaz de concordar com sua maneira e ser, de pensar e viver".

O interesse de Baudelaire pela poesia nasce do seu encontro na escola com escritores como Gautier, Victor Hugo e Sainte-Beuve. Devora-os e os recita de cor, o tempo todo. "Cada um desses versos o faz estremecer e seguidamente provoca nele convulsões nervosas...". Os professores gostam dele, mas acham que ele tem a "mente irrequieta" e o vêm "como um excêntrico, um original, uma espécie de místico que não faz nada como os outros e que se opõe a tudo quase por princípio".

Terminado o baccalauréat (exame final do ensino secundário na França) surge-lhe a pergunta: o que fazer na vida? O que escolher?

"Ele sente dentro de si paixões que o agitam, um violento desejo de tudo abraçar, uma enorme necessidade de aventuras. Ele sente que não é, aos dezenove anos, um jovem como os outros. Ele olha as pessoas à sua volta e convence de que nada tem de comum com elas. Para diferenciar-se, ele procura se vestir com bastante distinção, nunca saindo sem uma bengala com punho de marfim. Ele tampouco nega que vem da boa burguesia francesa e que as idéias de progresso lhe são indiferentes, bem como a de democracia. A seu ver, a rebelião, a revolta, primeiro passam pela alma e pelo coração. Pela carne e pelo sangue. Pelo verbo. Seus passos - macios, lentos, quase rítmicos - o conduzem ao Quartier Latin, e descobrir tipos de pessoas que nunca conhecera, criaturas que vivem encerradas na luxúria e no excesso".

Dessa experiência nasce o ser duplo ao qual se tornaria: "odiando a vida, alardeando contra ela e sua feiúra, abominando a existência e, ao mesmo tempo, estando sempre disposto a entusiasmar-se, a extasiar-se, a conquistar novas volúpias, a acreditar na beleza das coisas e na eterna claridade".

É nessa época que conhece a prostituta judia Sara, uma estrábica que lhe ensina e com quem experimenta as volúpias do amor carnal. É também nessa época, por causa de terríveis dores de cabeça, que começa a recorrer às drogas.

Ao decidir-se pela carreira de poeta endereça uma carta ao escritor Victor Hugo, querendo conhecê-lo pessoalmente e onde rasga o verbo em admiração: "Eu o amo como se ama um herói, um livro, como se ama puramente e sem interesse qualquer coisa bela. Deve entender este amor que um livro desperta por seu autor, e esta necessidade que tenho de agradecer-lhe de viva voz e de beijar-lhe humildemente as mãos".

Outra presença importante para Baudelaire, além de outras pessoas do meio literário francês, é o enigmático Gerárd de Nerval, então com 32 anos, tradutor de Schiller, Goethe (de quem traduziu o Fausto em 1828), Klopstock e um ativo participante de revistas literárias importantes. Encontra-se com Nerval nos cafés e admira sua facilidade por escrever sem precisar rasurar ou emendar textos.

Mas a nova vida acomodada de boêmio e literato complicam a relação com a família, tornando tenso o diálogo com o padrasto e a mãe. Aupick acredita poder domar o rebelde Baudelaire, chegando numa ocasião a esbofetear o poeta. Aceitando a decisão do marido, Caroline o deixa enviar Baudelaire para uma viagem de formação à Calcutá, à bordo do Paquebot-des-Mers-du-Sul. No barco, onde deveria aprender a vida rude e as privações dos marinheiros, o poeta assume ares de elegância e refinamento, destoando de todos, usando linguagem grandiloqüente nas suas conversas e longos monólogos que escandalizam a tripulação. Além do mais, seduz uma negra que acompanhara uma família crioula, vindo a chocar a tripulação com essa ligação.

Em meio à viagem, depois de 83 dias no mar, ao ancorar nas Ilhas Maurício, Baudelaire tem uma experiência sensorial que o marcará para sempre: "o âmbar, o almíscar, o benjoin, o incenso, a havana, a mirra... Os perfumes que Baudelaire descobre de repente embriagam seus sentidos - perfumes frescos como a carne dos infantes, doces como oboé, verdes como a campinas, outros dissolutos, ricos e triunfantes, outros ainda mais forte, que os poros da matéria filtram e que parecem penetrar no cristal." Registra os odores, mas a suavidade da ilha não lhe diz mais nada e se sente saturado. Logo após, em Port-Louis, decide regressar à Paris, mas antes escreve muitos poemas e sabe que quer ter o destino de Victor Hugo. Escreve um poema para a esposa de um colono francês que o recebera na ilha, a bela e atraente Emmeline. O poema será publicado em As Flores do Mal, em 1857, com o nome de "A uma dama crioula":

No inebriante país que o sol acaricia
Sob um dossel de agreste púrpura bordado
E cuja sombra nosso olhar delicia,
Conheci uma crioula de encanto ingnorado.

Desejoso de partir para Paris para rever a mãe, os amigos poetas, e as mulheres de vida fácil, Baudelaire deixará o Paquet-des-Mers-du-Sul partir para Calcutá sem sua presença.

Retornando a Paris, o poeta encontra ao mesmo tempo o general Aupick, "decidido a fazer todo o possível para trazer esse coração extraviado de volta ao caminho reto", e a liberdade que se avizinha com a maioridade legal, quando poderá tornar-se senhor de sua fortuna, tomando posse dos bens deixados por seu pai.

Com esse dinheiro poderá pagar suas dívidas, alugar um apartamento, comprar moveis, quadros, belos livros encadernados e roupas caras, além de se permitir pensar sem preocupações na sua carreira de escritor.

Terá também que enfrentar, agora como poeta, o meio literário mais rico e efervescente do planeta, com a presença de gênios vivos como Victor Hugo, Chateaubriant, Lamennais, Nodier, Balzac, Sand, Musset, Merimée, Saint-Beuve, Gautier, entre outros.

Terá que concorrer, por exemplo, com Balzac, que idolatra e "considera um visionário extraordinário e apaixonado, capaz de dotar de gênio cada um dos seus personagens, um dos maiores homens do século".

Daqui para a frente a França verá nascer um de seus maiores poetas e assistirá aos terríveis desdobramentos da vida de um dos seus maiores párias também.

Jardel Dias Cavalcanti
Londrina, 11/1/2011

 

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