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Quinta-feira, 20/1/2011 Adeus, Belas Artes Elisa Andrade Buzzo foto: Sissy Eiko Julho de 2002, Sala Carmen Miranda: foi minha primeira vez no Belas Artes. Era ainda o Grupo Alvorada que administrava o cinema. Tinha entrado no curso de jornalismo naquele ano e pagava três reais pela meia-entrada. Estávamos num grupo mais ou menos ruidoso de uma meia dúzia de amigos do tempo do colegial. A sessão transcorreu animada. Ainda não mensurava o sucesso mundial do longa. Depois das despedidas, eu pegaria ônibus em frente ao Araçá. Seriam os primórdios de um namoro. O filme? O fabuloso destino de Amélie Poulain. Ao relembrar os filmes que já assisti no Belas Artes me dou conta de que são essencialmente europeus (notadamente franceses), asiáticos, nacionais ou latino-americanos. Beijo na boca, não (o divertido musical Pas sur la bouche talvez tenha irritado alguns frequentadores do cinema, já que uma plaquinha na bilheteria avisava que o longa tratava-se de um musical), o engraçado e louco Dois em um (La personne aux deux personnes), o chinês cult 2046: os segredos do amor, os nacionais Verônica, Os 12 trabalhos, o belo argentino Ninho vazio (El nido vacío)... Que dizer então de Medos privados em lugares públicos (Coeurs), de Alain Resnais, em cartaz desde julho de 2007? É quase como se o filme ― assim como as fantasias e desventuras amorosas de suas personagens ― tivesse se ligado de tal forma ao cinema que ambos se tornaram sinônimos. Juntos até o fim. Ao sair daquela Paris soturna e melancolicamente risível nada mais se pode esperar do que uma continuação dela nas ruas de São Paulo. Mas tem que ser nas ruas, e não dentro de um shopping iluminado, esse the end nada happy. E um dos últimos que vi?, o cativante O pequeno Nicolau. Sessão vazia, como de costume algumas vezes. Mas não é esse aconchego e discrição que se busca às vezes? O anonimato de uma sala com uma meia dúzia de desconhecidos que compartilhem silenciosamente consigo uma história e, ao mesmo tempo, que não se intrometem em sua vida? O Belas Artes é assim, bom de se frequentar tanto sozinho quanto acompanhado. Sozinho, o melhor horário era o da tarde, em dias de semana. Nada de filas, nem pipoca amassada nos vãos dos degraus e no carpete. O clima do foyer é de intimidade à meia-luz; se a sessão demorar, vale um pão de queijo. À noite, em dias de semana, ele proporciona um jeito de ir ao cinema meio à moda antiga, na entrada do centro da cidade, ponto de encontro dos apaixonados, dos beijos furtivos e das relações mal resolvidas. Ou no fim de semana, vida contratual, o gozo de enfim sair, fugir, espantar. Pois é ela, a memória, que volta à tona ao ler a notícia, não sem uma pontada de espanto, do fechamento definitivo do cinema mais charmoso e com a melhor programação de São Paulo. Gostava de olhar os cartazes que davam para a rua, contrastar na metrópole tropical o estilo art nouveau do letreiro. A grande surpresa ao entrar no cinema reformado, o chão preto rebrilhando, as paredes escuras, meio cara de boate. A localização era ótima: perto do metrô. Não tinha erro. Aliás, agora tem a Estação Paulista bem ao lado. Será ela a causa do dono do imóvel querer alugar para a abertura de uma loja? Aquele quarteirão da Rua da Consolação começa a se valorizar cada vez mais. Azar do cinema. Costumo chorar no cinema, mas por causa de um cinema? Não é possível que o Belas Artes vá fechar. 67 anos aberto. Um marco histórico-cultural da cidade. Como as autoridades e os grandes empresários da maior cidade do país permitem uma coisa dessas? Ou melhor, como deixaram que isso chegasse a esse ponto? Pois não é de hoje que André Sturm luta para manter o cinema aberto. A situação só reflete o que já sabemos: o descaso com a cultura no Brasil é total (e isso porque estamos em São Paulo), e quando vemos um propagandear dela é na verdade pensando no próprio bolso que se está. Tivera eu cem mil reais por mês para a manutenção do cinema. Qual tipo de loja vai abrir lá? De departamento, de eletrodomésticos, popular? Outra de lâmpadas e iluminação? Não é possível. Apenas uma certeza: vou boicotar, seja lá o que for. Felizmente, em se tratando de cultura, da verdadeira, a lógica do lucro não vale. Aí podemos sair perdendo... e talvez por isso mesmo o Belas Artes deva fechar. Assim, um grande público se prepara para ficar órfão. Onde achar uma programação diversificada se não no bom e velho Belas Artes? Hoje temos ainda o Cinesesc, o Reserva, a Galeria Olido, o Cine Livraria Cultura... o CCSP e a Cinemateca com suas ótimas mostras de sempre. Onde encontrar o cinema de rua, categoria tão rara? O Gemini recém-fechado. Ao menos o Marabá reabriu. Mas não é só isso. O Belas Artes era a casa do cinema vivo e do cinema morto, dos passantes que o acaso tratava de levar à poltrona, dos apaixonados em busca de sossego. Agora, a questão é: onde achá-lo quando ele fechar definitivamente suas portas daqui a uma semana? Com o pedido de tombamento do edifício aceito, não poderão haver reformas: e os moradores de rua vão tomar conta da fachada? E daqui a alguns anos haverá apenas ruínas? Sala Carmen Miranda, 16h40. Fila na bilheteria. Burburinho. Cinco reais a entrada com a comprovação do holerite. O mural do cinema repleto de matérias sobre o fechamento. O documentário José e Pilar será meu último filme no Belas Artes? Após acompanhar com o coração na mão a vida estafante do Prêmio Nobel de Literatura, ao lado da mulher, Pilar, pergunto-me se, enfim, Saramago descansou, libertou-se das filas intermináveis de autógrafos, da agenda descomunal de escritor consagrado. A poltrona range. Mas, diz ele, na contramão do cansaço e da entrega, se houvesse algo que pediria (ou pediríamos) seria tempo. E vida. Elisa Andrade Buzzo |
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