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Quinta-feira, 3/2/2011 Duros tempos da vida moderna Elisa Andrade Buzzo foto: Sissy Eiko O coração bate mais forte, as pupilas se dilatam, as mãos se movimentam em manobras precisas e ele solta um urro de satisfação. Tal qual tubarão rondando sua presa submersa, pois estamos realmente mergulhados, não no mar, mas na terra úmida, cercados de tubos, canos, concreto, cancelas, levemente asfixiados pelo pesado ar subterrâneo, pressentimos quem sai da toca, se aproxima, para então abocanhar a fina mercadoria prestes a ser liberada: uma vaga! Antigamente, mas nem tão antigamente assim, a situação era diferente ― os estacionamentos dos shoppings eram amplos, ao ar livre e gratuitos. Aliás, parece que foi no Paleolítico que nosso ancestral nômade, um caçador disputando por espaços privilegiados, comportava-se de forma mais agressiva e instintiva. O que aconteceu então para essa volta ao passado? O que fez de nós vorazes perscrutadores de vagas de estacionamento de shopping? O paulistano frequenta cada vez mais suas praias artificiais, assim como o número delas na cidade nos últimos anos só fez aumentar. E do mesmo modo as expansões dos shoppings centers estão acontecendo, sujeitas a mais expansão ainda. Só que tudo isso se deu sem o aumento do número de vagas de estacionamento. Até mesmo os shoppings interligados em estações do metrô têm seus parques lotados. A mania VIP é mais uma idiossincrasia a ser considerada de tais estacionamentos. O espaço para essas vagas ― com manobrista, sala de espera, parede de MDF, e o que mais inventarem para justificarem o preço e a exclusividade de serviços irrelevantes ― aumentou, em detrimentos daquelas dos pobres mortais. Nada mais justo numa sociedade marcada pela concentração de renda ― tirar da cesta dos pequenos para colocar no saco dos grandes, afinal não há batatas em abundância para todos. Para começo de conversa, logo que o homem atual emboca o carro na entrada do estacionamento ele se dá conta de que acaba de ser relegado a uma segunda categoria. Pois se nos trens, navios e aviões há a primeira e a segunda classe, por que nos estacionamentos não haveria essas distinções que o dinheiro trata de enaltecer? Assim, enquanto alguns tem a sua caverna muito importante, outros neandertais vociferam na louca caça por abrigo. Semana retrasada acabou dando em briga feia um cadeirante indignado com o uso indevido de uma vaga especial por um delegado, em São José dos Campos. Não é para menos. Hoje em dia, os nervos afloram quando se trata do assunto. Também já fiquei muitas vezes indignada, clava em punho, vendo falsos velhinhos embicarem nas vagas de idosos, na maior cara dura. Isso me faz lembrar que, de uma hora para outra, reparo no surgimento de uma miríade de vagas diferenciadas ― para gestantes, idosos, portadores de deficiência física. O desenho no asfalto identificando a vaga para idosos, por exemplo, é uma imagem humana digna das pinturas rupestres: a representação simplificada, restrita a mínimos traços, de um homem encurvado portando uma bengala. E a da gestante então, uma grande barriga como a da Vênus de Laussel, encontrada na Dordonha, uma das mais antigas esculturas pré-históricas que conhecemos. Pergunto-me, caso essa imagem descolar-se do asfalto ― imbuída da magia que os hominídeos acreditavam incutir nas pinturas, cuja imagem se constituía em potencial realidade ―, como este senhor conseguiria dirigir e andar longamente pelo shopping, se ele sequer pode andar uns poucos metros a mais para sair do estacionamento. Disseram-me que a vaga seria não para quem dirige o veículo mas para o passageiro. Hum. Imagino: um dia serão todas as vagas especiais? Alguns seres humanos, ou seja lá qual for a espécie dominante, acabarão por fim destituídos do estacionamento? Ou quem sabe chegará o utópico momento comunista das vagas, em que todos os homens finalmente serão iguais e não distinguidos por suas condições, sejam corporais ou materiais? Aí, sim, o mundo voltará aos seus primórdios de pangeia democrática, e os parques serão grandes espaços indistintos, sem riscas nem desenhos patéticos. Decididamente, foram-se os tempos em que era só chegar e... estacionar. Qual a origem dessa ontológica insistência em se meter em enrascadas e seguir trepando em minhocas de cinco andares? É a busca por frutos pouco frescos, carne congelada, mas cômoda; o espírito aventureiro que fala mais alto? Passamos pelo vexame de rosnar para o outro, e mesmo nos colocamos em uma infantil disputa sobre quem chegou primeiro, quem viu primeiro ou mesmo quem deu seta primeiro por uma vaga. O passeio deixou de ser divertido para virar suplício. Mas a fabulosa epopeia Estacionar em Shoppings Centers da Capital Paulista nas Noites das Sextas-Feiras e Sábados ainda não acabou. Às 22h30 a carruagem vira abóbora, então, na saída congestionada deste estafante labirinto, após breve esquecimento, voltamos a nos perguntar: o que viemos fazer aqui de tão importante assim? Por que não viemos a pé ou não paramos simplesmente na rua? Por que volvemos às mesmas situações sabendo de seus riscos e perdas? Porque o homem continua incorrigível. E, mais uma vez, mamutes, minotauros, tiranossauros e toda uma fauna animalesca pronta a nos abater em manobras! Elisa Andrade Buzzo |
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