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Sexta-feira, 11/3/2011 Meu dente (quase) caiu Ana Elisa Ribeiro LIANA TIMM© (http://timm.art.br/) Meu dente caiu é o nome de um livro da fantástica Vivina de Assis Viana. É dessas obras escritas para as crianças e, provavelmente, com alguma especificidade para aquelas que se identificam com o drama dos dentes de leite versus a dentição permanente. "Meu dente caiu" é a frase que toda família escuta quando tem um guri em torno dos 6/7 anos de idade. E o dente cair é sinal de mudança de ciclo. Na atual crise da queda de dentes pela qual vem passando minha família, resolvi me deter nos sentidos que os dentes têm na nossa batida cultura popular. Não conheço dentistas (além do que trata meu dente protocolarmente), não há odontólogos na família, nem entre os namorados passageiros de primos e tios. Remotamente, há o irmão de uma amiga, mas mal o vi uma ou duas vezes. Então não tenho qualquer cacife para avançar por teorias científicas sobre mordidas e dentes. No entanto, com a vasta experiência de gente que morde, posso arriscar umas lendas dentais. O menino que eu pari, cirurgicamente, há quase 7 anos, anda babando por todo canto por manter a boca semiaberta, na tentativa vã de segurar o dente de leite na arcada inferior, logo ali, bem na frente do sorriso. Ele não quer que o dente caia, teme que sangre, tem pânico de ficar com as famosas "janelinhas", que, em tese, o deixariam menos lindinho. O curioso é que um dente, o vizinho, caiu faz tempo e já, inclusive, cedeu lugar a um mais robusto e ainda serrilhado. A experiência, no entanto, não bastou para que o garoto perdesse o medo da nova queda dentifrícia. O primeiro dente caído deveu-se a um esbarrão mais forte num primo mais velho, numa daquelas brincadeiras sacanas e estúpidas que os meninos aprendem mais cedo e melhor do que as meninas. O dianteiro de baixo amoleceu, dependurou-se e ficou por um fio. Uns dias depois, em outra sessão de brincadeiras imbecis, agora com o avô, o guri deu uma mordida no braço do velho e lá ficou o dentão espetado. A situação engraçada, no entanto, abafou qualquer tentativa de crise de choro ou de pânico. Recentissimamente, no entanto, ao deliciar-se com uma espiga de milho cozida, o segundo dente resolveu abandonar o posto. Amoleceu, desligou uns fios e ameaçou esconder-se entre os bagos amarelos do milho. Sangrou um pouco, o que deixou meu menino assustado e trêmulo. E há três ou quatro dias o dente ameaça cair, mas não consegue. O garoto apegou-se a ele e vem mantendo-o cuidadosamente apoiado sobre o dentão permanente que nasceu ao lado. As lendas são das mais variadas. Já disseram ao guri que o dente tem de ser jogado no telhado. Não me lembro ao certo da razão desse lançamento. A história que mais o encanta, no entanto, é a de uma tal fada do dente, que viria buscar a lembrança e deixaria, embaixo do travesseiro, umas moedas de verdade. Meu filho, que não é besta e gosta de comprar Hot Wheels, fica à espera das moedas de um real que a fada deve deixar. Mas nem sob promessa de pagamento ele quer permitir que o dentinho abra espaço para outro melhor. As perguntas espoucam o dia todo: "Mãe, e seu eu engolir meu dente? Ele morde a minha bunda?"; "Mãe, se o dente for para o estômago ele vira leite? (dente de leite)"; "Mãe, se a fada do dente não pegar meu dente ela fica brava?". Por via das dúvidas, a mãe tende a dar respostas sempre negativas. Não tenho nenhuma lembrança de quando meus dentes caíram. A memória mais antiga é a da cirurgia para retirar um tal de "freio", uma pelanquinha que separava os dentes da frente. A intervenção (pela qual ganhei uma sandália e um tênis, além de matar um dia de aula) era necessária para permitir o uso de aparelho ortodôntico logo em seguida. Dente é uma coisa que dá trabalho. Nasce, cai, cresce de novo, cai de novo. Machuca, quebra, morde a bochecha da gente, precisa de manutenção, gruda sujeira, forma crosta e craca, amarela, envelhece, fica torto, dá dor de cabeça, cria cárie, inflama, etc. E a cobrança em cima deles é alta, já que damos valor a belos sorrisos, dentes brancos, hálito puro, boca saudável, alinhamento, simetria e completude. Os banguelas precisam se camuflar atrás das dentaduras ou de peças menores, que tapam apenas falhas episódicas. Ninguém quer mostrar as manchas de antibiótico ou de cigarro. Há qualquer preconceito contra aqueles sorrisos do tipo 1001, assolados pela falta de informação, de cuidado ou de condições para obter ambos. Se antes dentes mal-cuidados eram coisa de pirata, hoje são coisa de excluído. O avanço na saúde transformou a normalidade da banguelice ou do escorbuto em doença tratável. E mesmo em educação. É desde criança que se torce esse pepino. Quando as caravelas chegaram, vieram com elas montes de homens vestidos, fedorentos e doentes da boca. Já imaginou os hálitos? Já sonhou você beijando um desses marinheiros d'além-mar? Prefiro mil vezes meu garotinho das janelinhas. O dente cai e não cai. Já indicaram até amarrar com uma linha, ligá-la à porta e empurrar. O engenho humano tem solução para quase tudo. Não canso de correr atrás do guri oferecendo-lhe mais milho cozido. E até o vovô já ofereceu o apetitoso braço para mais uma mordidinha eficaz. Depois deste ciclo, é esperar pelo nascimento dos sisos, visadíssimos, que todo mundo prescreve arrancar, mesmo quando não precisa. Segundo reza a lenda, são sinal de responsabilidade. Sei não. Os meus que o digam. Para ir além Ana Elisa Ribeiro |
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