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Segunda-feira, 2/5/2011 Ensaio sobre a surdez Antônio Sérgio Valente Vão dizer que estou ficando velho e implicante. Não me importo. Sinto-me jovem à beça, nem noto as minhas cinco décadas. Podem malhar à vontade. Só peço que não gritem, isto sim seria intolerável. A cena você provavelmente já viu. O semáforo fecha, você freia, e logo um turbinado qualquer, com os vidros abertos e o som na estratosfera, para ao seu lado. É verão, e você, seja porque é ecologista e não quer transferir mais calor ao meio ambiente, ou é sovina e não quer gastar mais combustível, ou é religioso e está se mortificando, ou simplesmente porque anda meio na tanga, o fato é você optou pela ventilação natural. Você olha para o condutor ao lado, na expectativa de que o seu mero olhar aborrecido consiga abaixar o volume, mas então nota os outros três ocupantes, todos jovens e sem camisa, com latas de cerveja nas mãos e peles que parecem de cobra. Você fecha os vidros, liga o ar e o rádio, mas não consegue deixar de ouvir as explosões na pedreira ao lado. Com sua enorme picardia curtida no tempo, você deduz que sofrem de surdez mental, foram mal amados pela família, por professores, colegas e pela tribo, só lhes resta a insolência de contestar na pele e no grito, eis como calam a voz interior. Até o gosto musical dos elementos, permita-me chamá-los assim, é extremamente duvidoso. O som demolidor nunca é de ópera, jazz, frevo, tango, bolero, samba-canção ou pop romântico. Vá lá, seria exigir muito. Mas, poxa, será possível que nem balanço, bossa, baião, brasa e brega eles ouvem? Na maioria das vezes, são umas irritantes bate-estacas mixadas por DJs, ou uns raps marginais bestificantes, uns pagodes sofríveis, não de fundo de quintal, mas de área de serviço de quitinete, tão mínimos. Letras rampeiras, melodias banais. Os menos insensatos tocam rock paulera, axé, forró e sertanejo do asfalto, mas até estes são insuportáveis, que as escolhas são quase sempre medonhas. Nunca o som é de uma bela canção italiana, francesa ou inglesa, uma MPB de qualidade, um Chico Buarque, Caetano, Gil, Milton, Vinicius, Tom, Vandré, Belchior, Djavan, Fagner, Renato Teixeira, Roberto, Erasmo, ou uma Elis, Gal, Bethânia, Fafá, Joana, Calcanhotto, Ana Carolina, Zélia Duncan, muito menos Noel, Lupicínio, Ataulfo, Adoniran, Vanzolini ― nada disso, só bate-estaca, britadeira e pula-pula. Mas o problema não é o gosto duvidoso, que nem todos são obrigados a querer o azul, devemos respeitar as diferenças. A questão maior está nos decibéis. Estremecem até o asfalto. Desconfio que os buracos da cidade, os vazamentos de água, os desmoronamentos, e até terremotos e tsunamis em outras partes do planeta aumentaram muito depois dessa onda, as autoridades e os cientistas que fiquem de olho. Exageros à parte, vá lá que o sujeito transforme a sua própria cabeça em lata de lixo, mas será justo espalhar o mal por onde passa? É lugar-comum o limiar entre direito de um e de outro, mas vem ao caso, ninguém é obrigado a ouvir o que não quer. Além do mais, esses moços vão ficar surdos de fato, se é que já não estão. Nem os alto-falantes publicitários de antigamente, nas capotas de camionetes e Kombis, que reproduziam a voz do Peru que Fala, a do Lombardi e de muitos outros, anunciando carnês, batatas e pamonha, eram tão chamativos e estridentes. E não é só no trânsito que isso acontece. É também nas praias, na frente de bares, em points de racha, e em certos postos de combustível ― a surdez grassa por aí. Pena que o Saramago partiu, ia lhe sugerir um Ensaio sobre a surdez. Não digo que ganhasse outro Nobel, mas garanto que até as monjas silenciosas iam rezar pelo ateu. Fica aí a ideia. Se alguém a pegar, faça a gentileza de sussurrar o meu crédito... Nota do Editor Leia também "Os piores músicos da década". Antônio Sérgio Valente |
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