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Quarta-feira, 2/3/2011 Derrotado Guilherme Pontes Coelho Eu fui derrotado por um livro. Não gosto quando isso acontece. Não gosto quando a expectativa que crio em torno de um livro evanesce a cada parágrafo lido. Por isso respiro fundo e tento continuar. Coço os olhos, alongo pernas e braços, estalo os dedos, como uma fruta, bebo água e volto à leitura, na esperança de que o problema seja comigo, não com o livro. Devo continuar lendo. Não devo parar só porque um trecho do volume não me agradou. Devo continuar a leitura, porque algumas páginas adiante aquele prazer de ler vai voltar, o autor fará o agonista mergulhar num novo mundo, o qual tentará entender, e eu seguirei o acompanhando página a página, como um anjo invisível, em sua jornada. Poppy Berry / Corbis © Páginas depois, a sensação de que eu tenho de fazer tudo novamente, o alongamento, a fruta, o copo d'água. Respiro fundo, coço os olhos. Há algo de errado comigo. Continuo. Mais adiante, evito ter de passar por tudo novamente, o alongamento, a fruta, a água. Fecho o livro. Algo de errado comigo, amanhã eu continuo. No dia seguinte, vejo a capa do livro, bonita, vejo onde o marcador está, além da metade, e resolvo "respirar a leitura" um pouco. Tomo outro livro. "Volto àquele quando acabar esse outro", penso. Leio o livro substituto em pouco tempo, converso sobre ele com minha esposa ou algum amigo, posso até escrever uma resenha a respeito. E, sem querer, acabo lendo outro, não aquele, e depois outro, e mais outro. Então eu me lembro daquele livro que havia deixado pela metade. Lembro que tenho expectativas. Lembro que as primeiras vinte, trinta, quarenta páginas são ótimas. Lembro que fiz algumas anotações às margens (todas a lápis). Lembro que há coisas interessantes nele. Vou lê-lo! E não, não vou recomeçar de onde parei. Há algumas semanas de hiato. É melhor recomeçar do zero. Recomeço a leitura, a partir da primeira página. A memória daquele prazer que só a leitura proporciona, o de viajar por vidas e ideias, reacende em minha mente. Você sabe o que é isso. Aquele senso de vivência compartilhada, de comunhão com agonistas, antagonistas, narradores. E aquelas dezenas de páginas interessantes, que fisgaram você quando da primeira leitura, voltam até mais interessantes, são redescobertas ― assim como as anotações que você fez da primeira vez também são redescobertas, e você acaba fazendo anotações de anotações, comparando o seu eu leitor de antes com o de agora, e você fica maravilhado com a mágica que é reler um livro. Aquelas cinquenta, sessenta, setenta páginas já conhecidas passam voando, e você continua lendo, feliz por chegar à primeira centena de páginas e sentir que desta vez você está bem para ler este livro, que ele é ótimo (como você imaginava), que você só precisava de tempo. Mas aí, depois de cento e dez, cento e vinte, centro e trinta páginas, você sente que chegou a hora de fazer o ritual curador, o ritual que dispersará as nuvens sobre sua leitura, que mostrará a você que é só um cansaço, que o livro é ótimo, que você só precisa se alongar, tomar uma água, ou um suco, para variar, e comer uma fruta, ou experimentar um chocolate. Que venha o ritual! Depois do rito, a decepção. Ele não adiantou de nada. Você até tentou, conseguiu ler umas dez páginas ainda, à força de algum senso de dever. A leitura emperrou como da primeira vez, só que mais forte. Mas, antes de pensar em refazer o ritual curador, lhe acontece a ideia salvadora. "Vou respirar um pouco a leitura", você pensa. Então você procura outros livros, devora a todos eles, como numa festa, como se tivesse acabado de sair da prisão em pleno carnaval pernambucano. E o tempo passa, você tem conversas animadíssimas sobre os outros livros a hora do almoço e do jantar, você escreve resenhas sobre os outros livros, você envia e-mails para seus amigos comentando os outros livros ― e seus amigos respondem aos seus e-mails, eles dizem que gostaram também dos outros e você fica contente, porque poucas coisas são tão boas quanto conversar sobre (os outros) livros. Um dia, porém, enquanto você arruma as estantes, enquanto você tenta reorganizar o tanto de livros espalhados pela casa (banheiro, corredores, quartos, escritório e até no quarto da sua filha!), um dia você se depara com aquele livro. Ele estava bem ali, no criado-mudo, ao seu lado o tempo todo, ouvindo sua respiração quando você dorme, observando seu corpo quando troca de roupa, ouvindo todos os sons e sentindo todos os cheiros toda vez que você faz amor. Ele estava bem ali, imóvel, estático, sólido, silencioso. Respirar fundo é a reação imediata. "Eu preciso ler este livro", você pensa. Um senso distorcido de honra obriga você a pensar assim. "Ler é bom", você se justifica. Pela terceira vez você recomeça a leitura daquele livro, que é de uma autora de quem você gosta, que é publicado por uma editora que você admira, que é traduzido por uma profissional que você respeita, que tem um projeto gráfico atraente, que tem uma apresentação lisonjeadora, que foi premiado com um Pulitzer. Você prepara uma ocasião especial para leitura. Você, de novo, cria um ambiente de respeito para o livro, você se apresenta a ele de banho tomado, com roupas limpas, bem alimentado, sereno. Você é só boa-fé e aceitação. Você espera chegar hora silenciosa para começar a leitura. E a recomeça. Aquelas primeiras setenta, oitenta, noventa páginas passam voando, voando como numa tediosa viagem rotineira a trabalho. Você ultrapassa a metade do livro sem nenhum encanto, mas mantém a esperança de que "aquilo" você está fazendo dará certo. Você continua a leitura. Você sente algo errado, mas continua a leitura. Você percebe que, naquela viagem, a paisagem bonita ficou lá trás, mas continua lendo. Você se dá conta de que seus companheiros de viagem são monótonos e enfadonhos, mas continua lendo. Você sente um desejo urgente de que o trem em que você está deveria descarrilar, de que o maquinista deveria dormir e causar uma catástrofe, de que você deveria pular pela janela e sair correndo, sentindo a liberdade em cada músculo do seu corpo e o coração, finalmente!, palpitando. Mas você continua lendo. E num impulso joga o livro longe! Viagem encerrada. Depois de viajar por dois terços do livro, você, exausto, não tem disposição, nem coragem, nem, muito menos, tesão para continuar. Você agradece pela liberdade recém-adquirida comendo uma fruta, ou um chocolate; você toma um chá, ou um suco, e solta uma gargalhada de felicidade, tão alta a ponto de acordar sua filha. Você vai ao quarto dela e a acaricia, ela adormece, e você também, enrolado num cobertor da Puka. Mas na manhã seguinte, a ressaca livresca. Eu não gosto disso. Fui derrotado por um livro. Guilherme Pontes Coelho |
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