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Segunda-feira, 7/3/2011 Geza Vermes, biógrafo de Jesus Cristo Ricardo de Mattos
"(...) quanto menos alguém sabe do passado e do presente, tanto mais inseguro será o seu juízo sobre o futuro." (Sigmund Freud) Geza Vermes (The Guardian) Em Assim falava Zaratustra, Nietzsche voltou-se contra Deus e atestou-lhe a morte. Dando prosseguimento à sua rabugice, Jesus Cristo e o Cristianismo tornaram-se os alvos principais. Segundo a apresentação de Renato Zuwick para a edição da qual nos valemos, O Anticristo foi escrito em 1888, último ano lúcido da vida do filósofo. Evidente que não morremos de amores por este ataque ao cristianismo. O que fizeram os antigos para justificar o ataque do filósofo não é difícil de encontrar nos livros de História. Todavia, ainda que batido, é válido o argumento de que Nietzsche concentrou-se nas mazelas provocadas pelas pessoas que diziam trabalhar em nome de Cristo, mas esqueceu-se das escolas, hospitais, asilos, creches e orfanatos fundados em seu nome por outros trabalhadores mais dignos de serem chamados "cristãos", e que se empenharam apesar de dispor de meios muitas vezes limitados. Devemos pensar, inclusive, na proteção que permitiu o desenvolvimento das Artes, como a música, a pintura, a escultura e a arquitetura. Nietzsche, enfim, cometeu o erro comum de confundir o Cristo com as igrejas fundadas em seu nome ― e você, leitor, sabe que a diferença entre igreja e religião é fundamental. Seus seguidores não parecem ter alcançado maior discernimento. Utilizando linguagem imprecisa e retórica ― "predestinação ao labirinto", "leitores predestinados", "experiência haurida de sete solidões" ―, Nietzsche assume posição análoga à de profeta. Para ele, "bom" é igual a "poder", e poder é igual a... ? Noutros pontos o filólogo retoma o controle e retoma-se o rigor linguístico: "idiota", "niilista". O Dicionário Oxford de Filosofia define niilismo como "teoria que promove o estado em que não se acredita em nada, ou de não ter comprometimentos ou objetivos". Para o filósofo, niilista é aquele que, na prática do altruísmo e da compaixão, corrompe os próprios instintos e avança na contramão do processo de seleção natural ao escolher situações prejudiciais à própria existência. Para certos psicólogos, altruísmo e compaixão são "problemas" que lhes atrapalham as teorias, como revelou Mario Beauregard em livro já apresentado. Outro ponto em que Nietzsche insiste é no privilégio à natureza biológica do homem. Ao mesmo tempo, afirma-se imbuído de espírito científico. Sendo assim, como explica a origem do super-homem, já que a natureza não dá saltos? Não é neste livro específico que ele dará a resposta, bem o sabemos. Porém, sendo o homem apenas um animal ― tese que muitos anseiam por uma palavra final e afirmativa da Ciência ―, matá-lo não difere de abater um boi. Execute-se a ideia e temos o Holocausto. Nietzsche hoje é defendido das alegações de que sua filosofia teria sido um dos fundamentos do nazismo. Alegam que sua irmã Elizabeth teria feito alterações propositais nos textos, garantindo-lhe a simpatia geral e a própria comodidade durante a guerra de 1939-1945. Não foi o Führer exatamente um filósofo arguto ou apreciador do prussiano, como esclarece-nos Timothy Ryback, autor d'A biblioteca esquecida de Hitler, mas devemos considerar as demais "cabeças pensantes" no governo. Não obstante, edições idôneas de sua obra ainda registram pensamentos como "os judeus são o povo mais funesto da história universal" e "assim como não escolheríamos judeus poloneses como companhia...". Abandonando um pouco o doutor de Leipzig, passemos à outra obra que nos chamou a atenção. O futuro de uma ilusão, publicado em 1927, vincula-se à obra anterior Totem e tabu. Nesta, o anseio pela figura paterna seria "a raiz da necessidade religiosa". Naquela, ora referida, Freud acrescenta que o desamparo do adulto é a continuidade do desamparo da criança. Ultrapassadas as primeiras faixas etárias, o adulto verifica que a sensação de desamparo é contínua e cria as figuras divinas das quais passa a esperar amparo e proteção. Não só as neuroses do adulto seriam a sequência das neuroses infantis, como as ideias das sociedades atuais teriam origem nas civilizações primitivas. "A ontogênese repetindo a filogênese", como dizia a Antropologia do século XIX. De qualquer forma, o pai da psicanálise restringiu o tema "à forma final em nossa cultura branca e cristã" do momento histórico em que viveu. Nietzsche, por Munch As teorias de Freud passam a ser cada vez mais consideradas hipóteses a serem submetidas ao rigor da experimentação científica, ao crivo dos dados empíricos, podendo ou não obter confirmação. Dizer que ninguém escreveu melhor do que ele é entusiasmo, não referendo da Verdade. N'O futuro de uma ilusão importam os conceitos analisados, como ideias religiosas, ilusão e divindade. "Ideias religiosas" seriam concepções acerca da realidade externa ou interna que o indivíduo não alcançou sozinho. Seriam também desejos antigos e fortes da humanidade. Freud afirma ser inerente a estas ideias a "reivindicação de crença". Dê-nos licença, Herr Doktor, mas ideias nada reivindicam: fazem-no quem as prega. "Ilusões" não são erros nem algo equiparável. Citando um de seus exemplos, Colombo não errou ao pensar que havia descoberto um novo caminho para as chamadas Índias Orientais. Ele realmente descobriu uma nova rota, mas iludiu-se ao pensar serem as Índias o novo chão em que pisou. Ilusão, enfim, é ter uma coisa por outra. Não que esta coisa não exista, mas nossa percepção a seu respeito que é falha. A crença torna-se ilusão quando deseja-se crer, mesmo diante da impossibilidade. Difunde-se em filmes e na televisão em geral a assertiva de que "cada um acredita naquilo que quer", o que consideramos preocupante. Enfim, no que diz respeito à divindade, si a criança encontra no pai a figura temível e protetora, o adulto primitivo encontra este mesmo temor e esta mesma proteção nas forças da natureza, com as quais precisa conviver. Dos ventos, das chuvas, do fogo e dos terremotos nasceriam os deuses. Quando estes deuses aproximam-se demais da forma humana ― vide os deuses da antiguidade clássica, por exemplo ―, têm lugar a perda do temor, a decadência, e o abandono final. Após ler a obra dentro de nossos limites intelectuais, questionamos si Deus é que foi condenado por Freud ou a forma como se crê n'Ele. Si é a busca humana pela transcendência que Freud previu como fadada ao abandono, ou a forma como isso se deu até o momento em que escrevia sua obra. Ele reconheceu que abolir a religião talvez não faça diferença. Nossa leitura percebeu pontos comuns nas obras estudadas. Nietzsche e Freud recorrem à dialética interna: afirmam, preveem argumentos contrários e antecipam respostas, fato mais explícito e assumido no texto do austríaco. Para ambos, a decadência social implica na decadência da divindade cultuada, seja na figura do ídolo contemporâneo em relação ao ídolo anterior ― Nietzsche ―, seja pelo abandono da crença em qualquer ser divino ― Freud. Os dois asseveram que o avanço científico excluirá necessariamente não só o Cristianismo como qualquer ideia religiosa, sendo que para o filósofo seria contraditório alguém dizer-se cristão e possuir conhecimentos científicos. As duas obras alertam o homem da sua relação com a Natureza, o que é um ponto positivo, ainda que Freud fale muitas vezes em dominá-la. Os dois livros, enfim, podem servir como purgativos de ideias e atitudes nefastas dos que se dizem religiosos, mas não como vitamina para o crescimento espiritual. Nietzsche repete em sua centúria, quase com as mesmas palavras, aquilo que o Marquês de Sade falou na anterior, basta conferir o Diálogo entre um padre e um moribundo. Freud endossa o pensamento de Auguste Comte, cuja filosofia, para ser bem compreendida e honestamente transmitida, deve considerar a Igreja Positivista por ele fundada. Portanto, si não são pensadores originais a respeito do tema, assinalaram suas obras como síntese do pensamento em voga na segunda metade do século XIX e na primeira metade do século XX. Após a Segunda Guerra Mundial, teve lugar um mal estar generalizado, não restrito à religião em particular. Defendemos a Fé, mas uma Fé robusta, despida de superstições e logros, que busque no Alto a orientação de sua jornada, e não no irmão ao lado, tão pejado de dúvidas e ansioso por esclarecimento como nós, mas talvez refratário em reconhecê-lo. A perfeição do Universo torna-nos surdos tanto ao cientista que nega a existência divina, quanto ao carola que alega conhecer claramente a vontade de Deus, e nosso julgamento ganha tal seriedade que dificilmente desejamos vê-lo malbaratado. Sigmund Freud Para o crente, a visão freudiana é reducionista. Deveras, Deus não pode ser medido, pesado, avaliado, comparado, e materialmente estimado. Contudo, quando sinceramente procurado, apresenta-se. Quem afirma-se incrédulo nada faz além de negar-se a este encontro, como a criança que, fechando os olhos, acredita-se desligada da realidade circundante. É um dos paradoxos da existência dos quais os monumentos humanos ― filosofia, ciência, religião institucionalizada, artes ― não dão conta por serem construídos, a exemplo da Torre de Babel, de baixo para cima. Allan Kardec recomendou mesmo que, antes de enveredar pelo estudo do Espiritismo, devem ser feitas três perguntas ao interessado: se ele crê em Deus, se ele crê possuir uma Alma, e se ele crê que essa Alma pode sobreviver ao corpo. A negação ou mesmo a hesitação em responder a qualquer uma destas perguntas torna inócuo o prosseguimento, pois o indivíduo deverá primeiro procurar ― e encontrar ― por si as respostas. De que adianta falar no espírito para quem não aceita ter um? Amado Ricardo: o que justifica toda esta introdução, quando a proposta inicial era apresentar os livros sobre Jesus Cristo escritos por Geza Vermes? É que acompanhamos as dificuldades que indivíduos de diversas idades, formações e posições sociais encontram em sua jornada espiritual. Dentro da cultura ocidental, Jesus Cristo é criticado na razão inversa em que é compreendido. Alie-se isto à conduta daqueles que se dizem seus seguidores e detentores da compreensão correta de seus ensinamentos, bem como o peso dado ao argumento de autoridade, e antes de nos arriscarmos a falar em Fé, descobrimos quais entulhos atravancam-nos o caminho. Geza Vermes (1924) nasceu na Hungria, em família judaica. Foi criado dentro do cristianismo, mas voltou ao seu "credo originário". Formado em Budapeste e Louvain, leciona estudos judaicos em Oxford. Concentrou-se na pessoa do chamado "Cristo histórico", a pessoa real que foi Jesus, desvinculado do misticismo criado em torno de sua figura. Independentemente das conclusões a que chegue o autor, livros assim são bem vindos por auxiliarem o leitor a afastar camadas de tradições que, se um dia floresceram, hoje são ramos que sufocam o solo em vez de adubá-lo. Partindo do que disse Freud, hoje podemos estar apenas alimentando o narcisismo dos que nos antecederam. Os títulos de Vermes publicados no Brasil são: A paixão, Jesus e o mundo do judaísmo, O autêntico Evangelho de Jesus, Quem é quem na época de Jesus, As várias faces de Jesus, A religião de Jesus, o judeu, Natividade e Os manuscritos do Mar Morto. Nietzsche e Freud também tiveram o comum convencimento de que o Cristianismo nasceu como uma corrente ou uma derivação do Judaísmo. Vermes parece não se afastar deste entendimento, inclusive procurando contatos entre atos e palavras de Jesus com personagens da tradição judaica. Concorde o leito ou não com isso, o importante é que a discussão passa a ter por base pesquisas e dados reais, sólidos. O autêntico Evangelho de Jesus e Quem é quem na época de Jesus podem ser consultados como enciclopédias, devido à divisão dos assuntos. Em seus estudos, Vermes prefere três dos evangelhos canônicos, isto é, evangelhos dados pela tradição como autênticos depositários do que se pode conhecer a respeito de Jesus e de seus ensinamentos. Exclui o de João, tido por ele como escrito por alguém mais preocupado com questões filosóficas e ontológicas, conferindo ao texto posição secundária e suas investigações. Restam os sinóticos, assim chamados porque, caso os fatos neles narrados fossem colocados em colunas paralelas ― em quadros sinóticos ―, eles seria repetidos quase com as mesmas palavras. Sempre aprendemos que o texto de Mateus seria o primeiro, o de Marcos um resumo e o de Lucas o caracterizado pelo estilo literário. Vermes posiciona-se afirmando que o de Marcos foi o primeiro a ser escrito e os outros dois seriam versões das quais constariam diversos acréscimos. As fontes de Vermes abrangem os chamados "Apócrifos", os manuscritos do Mar Morto, nos quais ele é especializado, bem como obras do filósofo judeu Filo de Alexandria e do historiador Flavio Josefo. Inovando a literatura relacionada, dá atenção maior ao Evangelho de Tomé, tido até recentemente como apócrifo. Nosso exemplar da obra encontra-se no volume d'A biblioteca de Nag Hammadi ― A tradução completa das escrituras Gnósticas, organizado por James Robinson, mas pode ser encontrado em edição isolada. Ricardo de Mattos |
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