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Sexta-feira, 15/4/2011
Meus livros, meus tablets e eu
Ana Elisa Ribeiro

A Cindy, um dia desses, declarou, via Twitter, que não faz mais sentido ficar guardando livros e mais livros dentro de casa. Os argumentos dela, em 140 caracteres, tinham a ver com poeira, peso e cheiro, se me lembro bem. Desculpe o leitor, mas é que minha memória anda meio devagar por conta da quantidade de próteses que tenho posto nela.

Em um dos livros que entulham minhas estantes, li que algumas pessoas estão superpreocupadas com o futuro das bibliotecas. O famoso historiador Robert Darnton lamentava os surtos de descarte e irresponsabilidade de várias bibliotecas no mundo. Narrava o professor que, em nome da liberação de espaços e até da química ácida do papel, bibliotecários malucos andaram microfilmando tudo e jogando toneladas de livros de papel fora, em fogueiras ou sabe lá onde.

Enquanto eu me envolvia tensamente com essas discussões, mais como expectadora do que como participante, caiu sobre minha mesa (ainda se usam mesas e escrivaninhas!) um artigo acadêmico. A missão era lê-lo, cuidadosamente, e dar um parecer criterioso sobre o trabalho.

Pus-me a escarafunchar aquele texto, com pouca curiosidade, confesso, mas isso foi só o início. Já no segundo parágrafo assaltou-me uma paixão grande pelo tema do trabalho. Dizia a autora (presumi que fosse mulher por uma série de motivos) que usaria aquelas páginas para relatar uma pesquisa com pessoas que guardaram seus livros ao longo de anos, décadas, quando não foi mais. E a pesquisadora propunha ali três categorias de "guardadores": os que guardam o livro original; os que guardam um livro conseguido depois; e os que guardam obras de terceiros (para os terceiros).

Uma quenturinha bem gostosa ficou no meio do meu peito naquele momento. Tirei os olhos do artigo para lembrar. Isso atrasa a leitura (e o trabalho) da gente, mas é ótimo sinal. Quantos textos fazem a gente levantar a cabeça? Mas essa ideia não é minha. É do Roland Barthes, que também apinha minhas pesadas estantes brancas, um francês apaixonante.

Lembrei dos livros que eu guardei: dos originais, dos que consegui depois e dos que guardo para terceiros (menos cuidadosos do que eu). E dos episódios que me trouxeram essas obras. Mas lamentei, profundamente, não mais saber por onde anda aquele livro com que fui alfabetizada. Será que fiz dele picadinho? Será que joguei fora, em uma das infinitas arrumações do quarto e da casa? Será que entreguei para minha mãe guardar (como fiz com fotos e filmes)?

De originais, estão comigo uns trabalhos de escola e os livros da Coleção Vaga-Lume (Ática). Guardados, mas ocupando lugar ostensivo na estante. Cheguei a expô-los na estante do meu filho, mas os recolhi de novo, já que ainda não sei ao certo que tipo de guardador de livros meu filho será. Fui cautelosa.

Fiquei mais feliz quando percebi que sou três tipos de leitora-guardadora em um! Guardo os meus e guardo uns que consegui depois. Caprichos & relaxos, do Leminski, repousa ao lado de todos os outros do autor que consegui aliciar. Mas este, esgotadíssimo faz tempo, foi dado de presente por um amigo. Assim como ele, A Galáxia de Gutenberg e uma biografia do Torquato Neto. Todos vindos de sebos em São Paulo ou em Curitiba, presentes preciosos de amigos gentis.

Olhando ao redor, certifiquei-me dos volumes que me classificam como uma guardadora de livros alheios, uma espécie de depositária apaixonada. Estão ali, junto dos meus, os livros da Vaga-Lume que foram dos meus irmãos. E, mais precioso ainda, um O pequeno príncipe que fora do meu pai, com dedicatória da professora que o premiava pelo bom desempenho na escola, na década de 1940!

Guardiã desses tesouros (metáfora comum entre os fiéis depositários de livros de papel), fico feliz em saber que há pessoas interessadas em planejar as próteses da memória, sem modismos e sem cegueira. Microfilmes, CDs, disquetes. Tivesse eu passado meus livros para disquetes e a esta altura estariam todos perdidos. Onde é que há espaços seguros neste mundo de virtualidades?

Certamente que é fabuloso imaginar que dez andares de vastas bibliotecas podem caber na minha mão. Fantástico imaginar todas estas lombadas que ocupam minha sala inteira compactadas no meu pendrive ou guardadas no meu tablet último tipo. Mas não dispenso que elas existam nesta sala, em papel e costura, para que eu as possa pegar, guardar e reler quando quiser. Inclusive relendo minhas antigas leituras, marcadas naquelas margens.

Sim, claro, nem precisam me advertir de que também posso anotar na tela, deixar comentários e ocupar menos espaço, matar menos árvores ou coisa que o valha. No entanto, ainda desconfio de dispositivos que apenas projetam obras que nunca estão disponíveis no mesmo lugar. Arquivos abertos, corrompidos ou não, sou ainda guardiã das minhas memórias, das do meu pai e das de meus irmãos.

Doei centenas de livros. Todos os anos, ofereço obras que não lerei mais a bibliotecas escolares públicas. Tenho cá a sensação de alimentar famintos. Mas há livros que não dou, não empresto e não revelo. Estes são como nacos da memória da vida inteira. Neles não enxergo páginas e papel. Lá eu vejo curtas-metragens das nossas vidas. Não pode ter sido à toa que resolvi guardá-los. Se não é por uma decisão tecnológica, talvez seja mesmo por razões afetivas. Por que não? Talvez eu também guarde meus tablets, quando ficarem obsoletos. E talvez eu possa confiar que poderei ler meus livros digitais, depois de anos sem ligá-los, como faço com meus impressos, depois de anos sem abri-los.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 15/4/2011

 

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