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Sexta-feira, 14/12/2001 Harry Potter e o Gladiador Alexandre Ramos Na Sexta-Feira Santa deste ano, eu era monge ainda, me deram o papel de Pôncio Pilatos — também conhecido como Pepê (1) — na liturgia da Paixão de Cristo. Do ponto de vista cênico, o Praefectus Judeae, representante do poder romano, é de longe o melhor personagem, já que Jesus praticamente entra mudo e sai calado. E crucificado, aliás. Mas desconfio que alguma obscura e provavelmente pérfida razão, que não o meu vasto talento dramático, presidiu à escolha. Vocês nem imaginam do que os monges são capazes. Não me deixaram usar uma versão mais simplesinha das transadíssimas armaduras vestidas por Joaquin Phoenix em Gladiador, nem uma daquelas sandálias com tiras trançadas nas pernas. Não houve sequer bacia e jarro, de modo que tive que concentrar toda a riqueza da interpretação na leitura. Creio modestamente que arrasei, e se o Ridley Scott me visse... Te cuida, Russell Crowe. Como qualquer bom ator, resolvi fazer laboratório e estudar um pouco o personagem, mergulhar na complexidade da mais remota e turbulenta província romana sob o império de Tibério, e acabei relendo algumas coisas já meio fora de moda, mas que me fizeram pensar. Depois que Jesus disse a Pilatos que veio a este mundo para dar testemunho da verdade, o romano perguntou “O que é a verdade?”, e nessa pergunta alguns autores identificaram uma influência da filosofia estóica. Sei lá, não conheço essas coisas, mas às vezes Jesus me parece uma luva, em que a aparência é sempre a mesma, mas o conteúdo pode mudar um bocado. Me explico. Por séculos cada palavra, cada passagem do Evangelho foi tomada como rigorosamente histórica (2). O desenvolvimento da crítica literária e dos estudos bíblicos foi mostrando que não é bem assim, algumas passagens foram elaboradas em vista de intenções teológicas precisas, ou em função do público a que se destinava o texto, mas depois a coisa degringolou para uma hipercrítica que simplesmente negava em bloco a historicidade dos Evangelhos, pretendendo uma distinção entre o “Cristo da Fé” e o “Jesus Histórico”, sendo que a este seria impossível chegar, mal dando para afirmar que ele existiu de verdade. Os Evangelhos, então, seriam uma mistureba no capricho de mitos, lendas, simbolismos de toda ordem, escritos por inumeráveis mãos. Um dos “demitizadores” — é assim que eles eram conhecidos —, Rudolf Bultmann, sempre se negou a ir conhecer a Terra Santa, simbolizando assim (se eles podem, eu também posso) o medo que aqueles caras que pretendem criar a História em seus escritórios têm de encontrar com a dita-cuja ao vivo e a cores, e ver como ela é diferente do que eles queriam. Um outro grupo, o dos “libertadores” - os quais, todos juntos, não seriam capazes de libertar alguém de um saco de papel molhado -, diz que Jesus morreu por causa das implicações políticas de sua pregação, quando nem Pilatos, nem Herodes, homens duros e cruéis, escoladíssimos nas coisas do poder - viram em Jesus nada além de um pregador da roça, um bufão, um zé-mané. Há ainda os esotéricos, que pretendem que Jesus desembarcou do disco voador, aprendeu levitação com o Lavai Lama em pessoa, fez doutorado em marketing em Wharton, e mais tarde foi descido da cruz ainda com vida, tratado com alguma milagrosa pomadinha japonesa — ou tibetana, ou egípcia, talvez com merthiolate — e ... bem, aí varia, a biblioteca do mosteiro tem uma penca de livros de autores seriíssimos, documentadíssimos, cientificíssimos, que provam por A+B que Jesus 1) voltou para o disco voador; 2) foi para as Gálias (por Tutatis!); 3) foi para a Índia; 4) foi para o Tibet ou 5) muito mais provavelmente, segundo minhas próprias pesquisas, foi criar galinhas em Teresópolis. Como se vê, não é difícil manter a aparência de alguma coisa e dar a ela o conteúdo que nos interessa. Reparem como a rebeldia e o inconformismo dos hippies, dos roqueiros e rebeldes sem causa em geral — aliás talvez esteja aí o problema: quando não há uma causa consistente, as manifestações superficiais significam muito pouco — acabaram assimilados, industrializados, embalados e vendidos justamente pelo “sistema” que eles pretenderam combater. Como disse o Bono, do U2, “não acredito que o rock’n’roll possa mudar o mundo” (3). Com os ilustres cientistas, filósofos e teólogos, que tão freqüentemente consideramos acima de sentimentos mesquinhos — e como nos enganamos nisso! — acontece o mesmo: reputações, prestígio, poder, a conquista de cátedras importantes e o implacável publique-ou-morra ajudam a obscurecer o raciocínio de muita gente “boa”. Procurar a verdade requer muita razão, muito instrumental técnico, muita ciência; mas também muita, ou, melhor, muitas virtudes: coragem, perseverança, humildade, honestidade, generosidade, a lista é longa. Sempre que leio artigos e livros do jornalista italiano Vittorio Messori, por exemplo, fico emocionado com o empenho desse homem, que combina rigor científico, curiosidade jornalística, muita coragem e uma ardente paixão em suas investigações sobre Jesus. Comigo a coisa já não é bem assim. Como não tenho a mente lógica e ordenada indispensável a qualquer filósofo ou cientista que se preze, e meus raciocínios procedem por caminhos tortuosos e obscuros, nesta altura do texto começo a lembrar do Harry Potter. Em suas aventuras, muito bacanas por sinal (4), a magia quebra um galho danado, mas sempre como ferramenta, e nunca ao ponto de substituir o esforço, o estudo, o trabalho duro. A magia também não fornece coragem, lealdade, companheirismo, dignidade e honra, muito menos corrige falta de caráter, covardia, inveja e malícia. O que quero dizer é que, para buscar a verdade, não bastam nem os mais refinados aparatos científicos, nem a credulidade tão exacerbada que acabe praticamente extinguindo a possibilidade de um real ato de fé. Afinal, quem acredita em tudo é porque na verdade já não acredita em nada. Para buscar a verdade — e Sócrates dizia que uma vida sem busca não é digna de ser vivida — é preciso um strip-tease moral, um despojamento de nossas ambições e vaidades, de nossos desejos e fantasias. Inclusive a de gladiador. Notas (1) Não confundir com o finado e saudoso pescador que possuía uma famosa barraquinha às margens do lago de Tiberíades. (2) Embora também, em plena Idade Média, a Bíblia fosse lida em chave alegórica de fio a pavio. (3) Em God part II, do álbum Rattle and Hum, o último que prestou. (4) É de bom-tom entre os fãs ter os seus personagens preferidos. Os meus são os gêmeos Fred e Jorge Weasley. Alexandre Ramos |
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