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Quinta-feira, 12/5/2011
No tempo da ficha telefônica
Elisa Andrade Buzzo


Ilustra: Tartaruga Feliz

O plaft sempre era seguido de um grito depois que seu Chico espalmava a ficha telefônica nas tenras mãozinhas dos alunos do liceu. Não havia escapatória. Quem quisesse telefonar seria prisioneiro do divertido carrasco por segundos intermináveis, a mão retida e escancarada.

A informalidade desses tempos chegava a ponto do porteiro guardar nos bolsos do jaleco azul as fichas prontas a serem vendidas por unidade, ou no pacotinho sacolejante de papel laranja comprido. O orelhão, era um só, vermelho (noto que as cores são elementos importantes quando se trata de reconstruir eventos da memória), e ficava numa salinha reservada onde éramos inquiridos pelo indiscreto padre-diretor "o que você quer com a mamãe? deixa ela fazer em paz o feijão com arroz em casa!" É claro que não contaria que iria ligar no seu trabalho para perguntar o que ela achava de eu tomar um cornetto, já pensou a bronca do padre Mário? Alguns dias depois percebi que era mais fácil me decidir sozinha pelo sorvete.

Mas por que nos últimos dias tenho me recordado do mundo movido à ficha? Aqui incluo a década de 1980 e comecinho da de 1990, da Discagem Direta à Distância (DDD). Como a crônica é o breve espaço da poesia do viver, reflexo da vida latente reconstruída no jornal, não deixei de refletir acerca da matéria "'Fora de moda', telefones públicos caem em desuso", do final do mês passado na Folha. Ela dizia que um novo plano da Anatel pretende diminuir o número dos famosos orelhões. Isso porque eu ainda uso, sim, orelhão, ainda que as fichas tenham sido há tempos abolidas.

Admirável como algumas atitudes, de tanto repetidas, se tornam maquinais a tal ponto que não nos damos conta da simpleza e beleza de seus métodos, até que nos vemos impossibilitados de realizá-las. Anos depois, é difícil rememorar o processo completo. Era um tal de tentar inserir a ficha a qualquer custo no buraquinho, pois ainda não sabia que suas fissuras deveriam coincidir exatamente com a da máquina para que tudo corresse bem. Para uma criança não era nada trivial alcançá-lo.

Tinha coisa mais gostosa e ao mesmo tempo aflitiva de se ouvir do que o ruído da ficha sendo engolida? O desespero de cortar uma ligação e não ter outra ficha em punho para alimentar mais três minutos de sofreguidão telefônica, ou o alívio de ter a conversação concluída e assim retirá-la do orifício embaixo do aparalho, assim que se colocava o telefone no gancho novamente.

Os telefones públicos estavam (e ainda estão) sempre lá, a postos. Havia mesmo uma pequena fila de inquietos usuários sendo grande sua procura. Um tanto indiscretos, ouvíamos conversas alheias, brigas, juras de amor. Como os tempos eram outros, nem todo mundo tinha a comodidade de ter um telefone fixo em casa. As linhas compradas demoravam a sair. E dá-lhe ver o povo batendo papo em orelhão nas ruas do Bom Retiro. Solitários, em duplas ou trios, os orelhões ainda subsistem nas grandes avenidas, em uma ou outra esquina. Perto de casa tenho segurança dos locais onde sei que posso encontrá-los numa distância de poucos metros.

E quem os usa se depara com um ou outro imprevisto: vandalismo, sujeira e o pior, por algum motivo eles simplesmente não funcionam. É o auge da frustração. Ainda que eu tenha celular, como não concordo com as tarifas abusivas, eu o uso mais para receber chamadas do que para efetuá-las. Assim, o orelhão, também serve para eventuais conversas mais longas, pois sai mais em conta usar cartão telefônico (ele próprio, aliás, propagandeia em seu verso "Pra que pagar mais?"). Dá mais dor no coração os créditos escorrendo pelo ralo do que a ficha caindo no gargalo.

Aliás, a sentença ameaçadora "fora de moda" parece também ter chegado nos cartões. Anos atrás, quando eles era novidade e parecia que não conseguiríamos viver sem ficha, havia modelos com bonitas pinturas, coisa de colecionador. Agora eles são cinzas, sem graça, ou então daquela indefinida cor verde-vômito-escarro da Telefonica. Os cartões telefônicos lembram os cartões de crédito, estes soberanos diante do dinheiro sujo e perigoso. Na carteira as moedas misturavam-se com as fichas. Hoje só talvez se confundir com os jetons dos parques de diversões ou com a ficha do velário ecológico da Sé, cuja inscrição **** nos recorda de sua utilidade e nos pede complacência.

O que me preocupa é a perda do senso público embutido nos telefones públicos, como seu próprio nome diz, diante da preferência pelo celular quase descartável, dos aparelhos cada vez mais particulares e alienantes, embora não haja como negar sua praticidade em muitos casos. Os orelhões são aquele tipo de objeto da rua que alguém sempre usa, alguém usa de vez em quando, ou nunca se usa. Por isso, o importante é que eles estejam lá, à espera da potencialidade de ser procurados. Algo que todos podem usar, disponível a qualquer hora do dia (um avanço nos últimos anos foi sua inserção dentro das estações de metrô da cidade). Entretanto, agora temos um retrocesso com essa tentativa de diminuir o número de orelhões. O mundo da rua, a começar pelas fichas, vem perdendo seus habitantes, tais como os hidrantes, as caixas de correio. Liberdade é ter tudo isso ao alcance, não só o que posso apanhar em meu bolso.

Estaremos daqui a algumas décadas confinados em nossos maravilhosos e dispendiosos aparelhos portáteis? É o começo do fim de uma era, em que a rua era o lugar público por excelência, em que todos necessariamente se encontravam e tocavam nos mesmos ganchos, apertavam os mesmos botãozinhos, tagarelavam nos bocais (supõe-se) periodicamente higienizados. Tudo por um preço mais ou menos justo. Logo restará usar os orelhões como guarda-sol, se resignar com suas propagandas pornôs acumuladas.

Elisa Andrade Buzzo
São Paulo, 12/5/2011

 

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