Segunda-feira, 30/5/2011
As Memórias de Viktor Frankl
Ricardo de Mattos
"O que é, então, um ser humano?(...) É o ser que inventou as câmaras de gás, mas é também aquele ser que entrou nas câmaras de gás, ereto, com uma oração nos lábios".
Entre os livros escritos pelo centenário escritor luso-brasileiro José da Silva Martins ― pai do pianista e maestro João Carlos Martins e do tributarista Ives Gandra da Silva Martins ― encontra-se a biografia do compositor Johann Sebastian Bach. A despeito de ter um filho especialista na obra do músico, Martins preferiu escrevê-la às escondidas, para que detalhes técnicos não interferissem no texto do admirador. Ora copiamos seu exemplo e queremos expressar nosso contentamento por ter conhecido a obra do psiquiatra vienense Viktor Emil Frankl.
Viktor Frankl nasceu em Viena, no dia cinco de março de 1905. Lá formou-se em Medicina e, por influência da Psicanálise, optou pela psiquiatria. Ainda estudante, correspondia-se com Sigmund Freud, a quem deve o encaminhamento e publicação, em 1924, de seu primeiro texto científico na Revista Internacional de Psicanálise. Posteriormente, houve o afastamento ideológico, mas Frankl afirma textualmente que a oposição teórica não diminuiu seu respeito por Freud.
Frankl também esteve ligado a Alfred Adler, fundador da Psicologia Individual. A divergência e afastamento entre os dois, contudo, foi mais evidente. A partir do afastamento de Frankl da Associação de Psicologia Individual, em 1927, Adler nunca fez questão de esconder seu ressentimento.
Os 32 livros escritos por Frankl já foram traduzidos para 27 línguas, entre as quais o japonês e o chinês. Do que existe em português, empreendemos a leitura sequencial e sistemática. Para esta coluna, extraímos diversas informações d'O que não está escrito nos meus livros, a última obra que escreveu e a de publicação mais recente entre nós. Antes, lemos Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. Temos em mãos A presença ignorada de Deus e aguardamos a chegada de Um sentido para a vida. Felizmente há outros disponíveis como Sede de sentido, Logoterapia e análise existencial, Psicoterapia para todos... Bravo!
A grande experiência existencial do psiquiatra foi a passagem por campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial. Entre 1942 e 1945, passou por quatro: Theresienstadt, Auschwitz, Kaufering e Türkheim, este vinculado ao de Dachau. Sua família era constituída por pai, mãe, um casal de irmãos e pela esposa. Terminada a Guerra, sobrou-lhe apenas a irmã.
A experiência teve sobre o pensamento científico de Frankl o mesmo efeito da panela de pressão sobre certos alimentos. A pressão sofrida e testemunhada supera qualquer descrição, mas a base do que seria sua futura terapêutica estava pronta.
Ele propôs-se a dar à Psicologia, através da análise existencial, o sentido de "conscientizar o ser humano(...) de seu ser responsável, ou trazer perante sua consciência o caráter de responsabilidade da existência". Em suma, no indivíduo apresentado como um joguete de determinismos sociais e ambientais, movido por pulsos ou impulsos explicados de forma mecanicista e materialista, Frankl alertou sobe a necessidade de resgatar o ser espiritual.
Até onde chegamos, na leitura de sua obra, não encontramos sua definição de espírito. Caso isto ocorra, talvez explique-se por sua concepção de, como médico, não avançar o campo da teologia. Como cientista, reconhece a importância do espírito, mas delega ao teólogo a incumbência de defini-lo. Como médico, lembrou-se que um tratamento deve ser estendido a todos: crentes, ateus, materialistas, idealistas, espiritualistas e outras denominações mais que se queira encontrar. Todavia, lega-nos n'A presença ignorada de Deus o conceito de "inconsciente espiritual".
Sua teoria psicologica encontra sólido fundamento numa filosofia de cunho existencialista, por mais contraditório que isto possa parecer a quem não está familiarizado com a discussão. Si há pensadores dos séculos XIX e XX que pregaram a ausência de sentido para a existência, e culminaram no niilismo ― Nietzsche, Sartre ―, Frankl defendeu justamente o contrário e cuidou de pessoas baseado nesta convicção. Encontrado um sentido para a vida do paciente, todo o resto começa a "encaixar-se", conforme compreendemos até o momento. Na verdade, conforme vivenciamos até o momento.
Note-se que se falou acima em "um" sentido que acabe tendo finalidade terapêutica. Não se falou a respeito "do" sentido da vida. Para Frankl, a vida tem um sentido mais amplo que inclui, também, a doença, o sofrimento e a morte. O sentido de que ele fala é aquela meta que o indivíduo deseja alcançar e, por ela dispõe-se a suportar todas as dificuldades do caminho. Este sentido pode ser encontrado numa obra, no amor e no próprio sofrimento. Como dito, ele recorreu à própria experiência nos campos de concentração, onde sua teoria foi depurada.
Frankl encontrou sentido no trabalho, pois não queria "entregar os pontos" sem publicar um livro, o embrião d'A busca de sentido. Quanto ao amor, revelou que durante a lida forçada em canteiro de obras nos quais se aliavam o frio vários graus abaixo de zero e a gentileza dos oficiais e capatazes nazistas, sua sustentação vinha de diálogos imaginários travados com a esposa, presa em outro local. Já o sofrimento foi percebido como fonte de significado existencial, porque Frankl considerou desperdício passar por tudo o que passou e não extrair lições, não superar a dor e torná-la útil. Não seria pedir demais?
Quanto a isso, dois esclarecimentos podem ser encontrados em sua obra. Os prisioneiros que não encontraram sentido para resistir foram os que primeiro sucumbiram, seja por fraqueza, doença ou suicídio. O segundo é que não se trata de qualquer sofrimento, mas, sim, daquele que o indivíduo não pode escapar, como a doença grave, a deficiência irreparável ou a perda de alguém. Sofrer "voluntariamente", por inércia ou ignorância, perde o valor segundo Frankl.
"Ah, mas o que pode ser sofrimento para mim pode não ser para você". Certo. Então vá ler Crepúsculo, não os livros de Viktor Frankl. Creditamos este falso relativismo e precária visão de mundo à estimulada hipersensibilização contemporânea das pessoas. Parte de sua proposta é justamente ver o que nos causa dor, procurar o significado a ser extraído e eliminá-la, si não houver. De nossa parte, entendemos que a evolução faz o espírito encarar como dificuldade superável ― e até didática ― aquilo outrora lamentado como sofrimento doloroso. Há um Bem, e a capacidade de enxergá-lo é que varia.
As Memórias parecem ser o livro mais simples quanto à escrita, mas nele encontramos a palavra final de Frankl a respeito de questões abertas em outros textos. O volume de Em busca de sentido, por exemplo, possui dois anexos teóricos a respeito da Logoterapia, a chamada "terceira escola vienense de psicoterapia". Na autobiografia, Frankl reafirma sua preocupação em livrar o tratamento psicoterápico do que ele chamou "psicologismo" que parece mais um exercício de compreensão teórica e validação prática de doutrinas e afasta-se da função originária de ajudar. Citamos até exemplo ocorrido recentemente. Uma colega reclamou de coceira no anular direito, onde usa a aliança de noivado. O jargão veio pronto à mente: "manifestação psicossomática da rejeição inconsciente ao compromisso representado pelo anel". Tudo certo quanto ao jargão, mas dito em voz alta, quem lucraria com ele?
Para ir além
Ricardo de Mattos
Taubaté, 30/5/2011
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