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Segunda-feira, 6/6/2011 Aluga-se um escritório Ricardo de Mattos
"Esta expressão 'Leitura', há cem anos, sugeria logo a imagem de uma livraria silenciosa, com bustos de Platão e de Sêneca, uma ampla poltrona almofadada, uma janela aberta sobre os aromas de um jardim: e neste retiro austero de paz estudiosa, um homem fino, erudito, saboreando linha a linha o seu livro, num recolhimento quase amoroso" (Eça de Queiróz). Teto do gabinete de Montaigne Nosso caro Montaigne recolhia-se a sua torre, na qual tanto ditava quanto escrevia de próprio punho. Tanto lia seus livros quanto as sentenças dos antigos gravadas nas traves e colunas de madeira. Imaginamos o trabalho de seu secretário. O ditado era fluente, ou devia ficar com a pena no ar por tempo indefinido? Pascal e Descartes preferiam a cama. O primeiro pela fragilidade da saúde. O segundo, por gostar do conforto. Cogitou-se ser a quebra deste costume a causa da pneumonia que o levou à morte. Mudando-se para a gélida corte de Cristina da Suécia, era requisitado logo cedo pela rainha. A maior parte das descrições é feita por terceiros, visto que o dono e principal usuário está preocupado mais com o trabalho que com a disposição do tinteiro - ou do notebook. O inglês Kipling legou-nos o inventário de sua escrivaninha: porta-caneta em forma de canoa, caixa de madeira, estojo de madeira e de metal, pesos para papel, régua e outros "pequenos fetiches". Quem o relata é o argentino Alberto Manguel nOs livros e os dias, e a seu turno revela o que dispõe sobre sua mesa: caixa de pedra vietnamita, suporte de incenso, descanso de copos, pêra de vidro, etc. Em que pese o valor afetivo dos badulaques, bem como a função arquivística de cada um - também os tivemos -, deter-se em demasia sobre eles remete-nos àquelas revistas de sala de espera. Até onde lemos os textos borgeanos, não nos lembramos de descrições autógrafas de seus gabinetes de trabalho, quer o doméstico, quer na biblioteca em que trabalhou. Inobstante, a versão digital do periódico inglês The Guardian possui uma seção destinada às salas de trabalho de escritores, músicos e artistas gráficos (http://www.guardian.co.uk/books/series/writersrooms). Manguel, pelo que se lê nos livros Uma história da leitura, Os livros e os dias, e A biblioteca à noite, tem especial sensibilidade para observar, descrever e criar o setting da leitura e da escrita. Sensibilidade com a qual devem aprender os prudentes. Tendo ficado sob nossa responsabilidade direta a biblioteca do centro espírita que trabalhamos, é nossa preocupação constante manter o ambiente acolhedor e aconchegante, ao mesmo tempo que aplicamos quanto possível as disposições de Allan Kardec. Reconstituição do local de trabalho de Baruch Spinosa De fato, um excelente trabalho de bibliofilia resgatou e fez publicar o Catálogo racional - Obras para se fundar uma biblioteca espírita. Conhecemo-lo poucos meses antes de assumir a referida biblioteca, numa incidência de fatos que não nos é mais estranha. Nele, Kardec sugeria obras de esclarecimento do leitor a respeito da Doutrina nascente, entregando ao indivíduo o arbítrio da aceitação ou da rejeição. Sugeriu também que as obras sejam organizadas em quatro categorias: (I) obras fundamentais; (II) obras complementares; (III) obras escritas fora do Espiritismo, incluindo aqui produções a respeito do budismo, do islamismo e o que mais havia de atualizado em obras científicas; (IV) obras contra o Espiritismo. Trata-se do último opúsculo do Codificador. No dia de seu desencarne, ele conferia as brochuras que seriam entregues com a edição do mês da Revista Espírita. É pouquíssimo conhecido mesmo nos meios espíritas. A esta altura da vida, permeamos a herança avoenga com nossas próprias expectativas e aquisições. Entretanto, a configuração do local definitivo está adiada. Futuramente, almejamos um local maior e melhor, onde possamos, por exemplo, organizar todos os nossos livros, e rogamos a Deus por construção térrea que abra para um jardim. "Si temos uma biblioteca e um jardim, temos tudo", teria afirmado Cicerus. A leitura da matéria sobre o apartamento de Mailler lembrou-nos que a fase de transição hoje vivenciada torna necessário desfazermo-nos de nosso atual escritório. Considerando que internet facilitou as consultas forenses; que a maior parte do trabalho dispensa a presença em local determinado; e que a faculdade ocupa-nos boa parte do dia, não há porque mantê-lo fechado e ocioso. Não fosse o custo de reforma chata, aliado à necessidade de acompanhá-la in loco, já o teríamos encaminhado à imobiliária. Sentimos falta do lugar onde pudemos parar e silenciar o corpo e o espírito e encontrar a tranqüilidade momentânea que permitia tanto o fluir do trabalho quanto a igualmente importante reflexão.
Não é negada certa resistência, pois uma década transcorreu entre suas paredes. Estávamos ali no terrível "onze de setembro" - prestes a repetir-se - quando uma vizinha entrou correndo para avisar que "os Estados Unidos estavam sendo bombardeados". Naquele ambiente escrevemos despreocupadamente a coluna que nos vinculou ao Digestivo Cultural e quase todas as demais. Foi nosso local de trabalho, mas foi também onde lemos grandes obras e refletimos sobre elas em meio à fumaça de pretensiosos charutos e cachimbos. Lá também fizemos a transição do catolicismo para o kardecismo. Lá obtivemos os meios que permitissem a atual mudança de rumo existencial, não apenas no aspecto financeiro, mas principalmente em relação ao estofo espiritual que sustentasse o passo seguinte. Ricardo de Mattos |
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