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Sexta-feira, 1/7/2011
Meio-dia no Rio de Janeiro
Marta Barcellos

Primeiro vamos lembrar: eu posso falar mal do Rio, mas você não. É o combinado, principalmente com os paulistas. Mas saiba que mesmo quem tem carta branca, certidão atestando a gema como origem da autêntica carioquice, sofre hoje da dificuldade de reclamar. Ignoramos a página policial, nos adaptamos ao custo Rio-2016 expresso na conta do restaurante com cinco anos de antecedência e acreditamos que o trânsito está infernal mas os benefícios serão permanentes. Para não perder o hábito, falamos dos bueiros que explodem na cidade, que absurdo - para emendar que "Bueiro da Light" virou o drinque do momento, explosivo no bom sentido, segundo o bartender. Sabe como é, somos inteligentes e bem humorados, sempre.

Claro que às vezes ficamos um pouco confusos. Tudo era exatamente o contrário, até poucos anos atrás. Queríamos retornar ao tempo de quando éramos corte, ou pelo menos capital federal; de quando nossos governantes tinham projeção nacional e não eram motivo de piada. Queríamos de volta os morros celeiros de sambistas, e não de bandidos, a estética da pobreza urbana e pacata enfeitando, e não desmatando a paisagem. Mas não havia mágica nem máquina do tempo: o jeito era blindar o vidro da sala, seguir para o aeroporto, aguentar os comentários dos paulistas.

Em um piscar de olhos, tudo mudou - a cidade, o país, a distância em relação ao primeiro mundo já não tão rico assim. Mais do que o brasileiro em geral, o carioca superou o complexo de vira-latas, recuperou a autoestima perdida nos arrastões e só não subiu no salto alto porque bacana no Rio é andar de chinelo e bermuda - e ser imitado pelos turistas. Os estrangeiros sempre estiveram por aqui, desde os tempos de Carmem Miranda e Zé Carioca, mas nunca foram tão constantes. Carnaval, abril, julho, faça chuva ou faça sol, eles continuam perambulando pelo calçadão. E estão diferentes.

Talvez abalados pela crise financeira, a nova ordem econômica mundial, o trauma do 11 de setembro, sabe-se lá. O fato é que os gringos agora são mais humildes e discretos, tentam se camuflar, já não usam camisas floridas e cafonas. Estão menos interessados nos shows de mulatas do que em flanar pelos bares onde serão mal tratados por garçons que não falam inglês. Não somos apenas mais um paraíso tropical, mas o país de Giseles e havaianas, o país do futuro que afinal chegou lá. É engraçado ver europeias branquelas tentando parecer cariocas, saindo de chinelos justo no dia de inverno em que chove e as botas (sem salto, claro) explodem as poças nas calçadas. Parecem as brasileiras em Paris, antigamente, quando tudo era ao contrário, tentando dar de o nó certo na echarpe que mal sabiam usar.

Nós, cariocas, poderíamos estar irritados, como os parisienses que precisam driblar grupos de excursões para apreciar seus museus. Junto com o turismo e a cotação do real, nossos preços dispararam, nosso café preferido agora está lotado, e não são poucos os cariocas expulsos da zona sul por aluguéis galopantes. Poderíamos, mas não estamos. Somos apenas blasé, sem o mau humor francês, e disfarçamos bem o nosso orgulho, da mesma forma que sempre fingimos não ver os artistas da televisão empurrando carrinhos de bebê. Ah, sim, é verdade; nossa cidade é mesmo maravilhosa.

Mas a mudança foi rápida demais, como já foi lembrado. E existem os distraídos, sem falar nos nostálgicos empedernidos. Talvez sem tanto contato com os elogios externos, ou ainda influenciados pela politização das boas notícias nas últimas eleições, estes podem embarcar no bonde do passado, como no novo filme de Woody Allen. Ao meio-dia eles sobem no estribo que leva a Santa Teresa, equilibram-se sobre o Rio Antigo, os Arcos da Lapa, sem notar a aglomeração de jovens alegres lá embaixo. Desfiam uma ladainha chorosa sobre os bons tempos, estes sim bem retratados nas páginas de jornal, frequentadas por intelectuais e poetas de verdade. Os cronistas, ah, os cronistas não eram de internet - havia Rubem Braga. Aliás, o que era Copacabana, hein, diria o Zózimo, também colunista que não se encontra mais. O Rio ingênuo e sofisticado da bossa nova, repisado agora por documentários, era tão mais fácil de decifrar do que o Rio do funk.

Da Copacabana de Rubem Braga, não sei. Mas do Leblon de Manoel Carlos posso contar. Como o personagem que lembra, em Meia-noite em Paris, que a vida não devia ser fácil antes do antibiótico e da anestesia no dentista, vou ressaltar que era difícil até para artista global empurrar carrinho de bebê na calçada. Os carros ficavam em cima delas. Trinta anos atrás, o bairro era bem chinfrim, tomado por pontos finais de ônibus, e qualquer comparação com o charme parisiense ou nova-iorquino passaria por piada. A praia vivia poluída por esgoto, imprópria para banho - isso quando não se sentia o cheiro da mortandade de peixes da Lagoa Rodrigo de Freitas. Passear de bicicleta na Lagoa, jamais: não havia ciclovia nem quiosques, e o assalto era certo.

Por essas e muitas outras, pego o bonde de volta. Admito que precisei ficar uns anos fora, para ter o distanciamento necessário. Não me iludo com o oba-oba da Copa e da Olimpíada, e nem creio que viraremos um dia o "antigo primeiro mundo" (e nem ele voltará a ser). Procuro fugir dos extremos. O meu Rio, como a Paris de Woody Allen, nunca foi o do arrastão no Jornal Nacional, nem é hoje o do cartão postal em 3D na tela do cinema. Ele carrega as complexidades de seu passado, suas favelas, sua música, seu povo e sua elite. E oferece tanta diversão e contemplação que, vamos combinar de novo (principalmente com os paulistas), é bobagem perder tempo. Seja com desconfianças, política ou nostalgia.

Nota do Editor
Marta Barcellos mantém o blog Espuminha

Marta Barcellos
Rio de Janeiro, 1/7/2011

 

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