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Quinta-feira, 21/7/2011 Por quem os sinos dobram em Paris? Vicente Escudero Na França, à meia-noite, os sinos dobram pela nostalgia de um escritor de roteiros de Hollywood perdido nas memórias afetivas de seus ídolos literários convivendo numa Paris festiva e boêmia, um redemoinho agregador de artistas dividindo suas expectativas e dúvidas entre um trago e outro, dançando no ritmo do jazz de Cole Porter e se encontrando na casa de Gertrude Stein para discutir ideias e dividir opiniões sobre seus trabalhos. T.S. Eliot esteve lá, com Fitzgerald e Zelda, Pablo Picasso, Dalí e Matisse, todos formando uma particular posteridade descrita por Hemingway, incumbido da função de delator na biografia definitiva da boemia e efervescência cultural dos anos de ouro de Paris, nas primeiras décadas do século XX, em Paris é uma Festa, publicado em 1964, logo após sua morte. Quem não gostaria de voltar no tempo e tomar alguns goles de absinto com seus ídolos, enquanto estavam no auge criativo? Viajar de volta no tempo ainda é uma tarefa impossível. Para amenizar esta dificuldade técnica, resta apenas ao cinema ligar os dois pontos distantes da história e transportar o espectador para dentro da fantasia, neste caso um retrato fiel, pelo menos sentimental, das emoções do protagonista do novo filme dirigido e escrito por Woody Allen, Meia Noite em Paris. Gil, interpretado por Owen Wilson, é um escritor de roteiros de Hollywood prestes a se casar, em visita a Paris com sua noiva Inez (Rachel McAdams) acompanhada da família. Gil é um roteirista insatisfeito com o trabalho, distante da realidade e indiferente ao presente. Sonha em viver apenas da literatura e abandonar os roteiros açucarados que produz, mas não tem confiança para avançar e terminar o romance que está escrevendo. Allen mais uma vez faz uma paródia de si mesmo, utilizando Owen Wilson, ator um pouco mais limitado do que as suas escolhas para protagonistas de filmes anteriores, como Hugh Jackman, Ewan McGregor e Jonathan Rhys Meyers. Apesar de suas limitações, Wilson acaba compensando pela sutileza cômica, a trágica passividade expressada nos conflitos com a noiva Inez, sempre disposta a gastar a paciência e o adiantamento recebido por Gil pelo seu último roteiro até os últimos centavos. O roteirista deseja conhecer os becos e cafés tradicionais de Paris, onde seus ídolos literários se escondiam do medo do fracasso, caminhar pela cidade durante a chuva "quando a cidade é mais bela", mas Inez é quase indiferente aos seus impulsos saudosistas e românticos, preocupa-se apenas em replicar a vida que leva na Califórnia, dentro de Paris. Woody Allen aproveita para depreciar o estilo de vida consumista e espalhafatoso, apresentado por Inez e sua família, ao contrapor Gil Pender ao pedantíssimo escritor e professor universitário chamado Paul (Michael Sheen), amigo de Inez visitando Paris para palestrar na Sorbonne, que encontra o casal logo no início da viagem, enquanto almoçam num restaurante. Paul se esforça para impressionar Inez, tornando-se onipresente na viagem do casal e servindo de modelo de refinamento intelectual e conta bancária a ser alcançado por Gil, segundo Inez. Paul domina os cenários para conseguir demonstrar que sempre domina os assuntos. Enquanto observam uma estátua de Rodin, Paul se encarrega de destrinchar para os presentes, de forma mecânica e burocrática, todos os detalhes factuais e cronológicos que serviram de inspiração para a criação da escultura, complemetando, interrompendo e questionando a apresentação feita pela guia do museu, interpretada por Carla Bruni. Paul, atendendo aos padrões de refinamento exigidos por Inez, também é um enófilo e sabe apreciar a delicadeza do aroma e do sabor de cada safra de vinhos, enquanto Gil está mais preocupado em comer no mesmo bar onde esteve James Joyce ou dividir com a noiva uma quitinete perto da Sorbonne para reviver as agruras de Hemingway e sua primeira esposa, Hadley. A fotografia de Paris pinta a adoração de Allen pela cidade. O movimento só existe durante a noite, o dia é reservado para o cotidiano banal da família de Inez, contrapondo a boemia noturna de ruas solitárias com o frenesi do trânsito intenso do dia. Gil Pender explora os becos estreitos durante a noite e acaba encontrando num velho calhambeque Peugeot os passageiros que o conduzem para a Paris de suas lembranças, onde encontra os ídolos que construíram suas obras favoritas, discutindo sobre a vida com Hemingway, Fitzgerald, Getrude Stein, T. S. Eliot e outros artistas, além de ter seu livro avaliado por Gertrude Stein e ganhar um conselho que muda o rumo de sua vida. Entre as viagens no tempo, um amor que se encerra no passado acaba renascendo no presente, num jogo entre épocas que imita a composição dos tempos de um romance. Owen Wilson é uma surpresa interessante no papel de Gil Pender. Suas viagens pelo tempo na Cidade da Luz são uma representação fiel das preferências de Woody Allen e reproduzem o sonho comum dos escritores de algum dia dividir as angústias da escrita com seus ídolos. Nesse processo de reconstrução das imagens de homens e mulheres imperfeitos, mas autores de obras monumentais, a memória sacrifica os defeitos e acaba impondo aos personagens uma aura de santidade, sempre acompanhados de perto pela ingenuidade das lembranças de um admirador do futuro. Na homenagem a Paris, Woody Allen extravasa o humor de costumes e encerra uma reverência aos seus ídolos precursores. E é neste defeito, a sinceridade, que se encontra o grande valor do filme. Vicente Escudero |
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