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Sexta-feira, 15/7/2011
Rotina, por que não?
Ana Elisa Ribeiro

Um perigo grande repetir ideias e discursos que vêm de algum lugar muito genérico. Não sabemos de onde partem, por que existem, mas é certo que estão cheios de pequenas malícias. Por que não pensar nas coisas antes? Pensar antes de dizer? Pensar antes de propagar qualquer porcaria, invencionice meio pública?

Por diversas razões, eu me peguei pensando muito na rotina. Talvez porque ela seja reconfortante, além de repetitiva. Ou porque ela seja inexorável, ao longo da vida, e porque não se pode fugir dela, em alguma medida. Talvez porque haja uma música do Chico Buarque na minha cabeça, incessante, pregnante. Aquela canção que diz que "todo dia ela faz tudo sempre igual/me sacode às seis horas da manhã/me sorri um sorriso pontual/e me beija com a boca de hortelã". A música, intitulada "Cotidiano", não me parece menos do que a narrativa das delícias de uma rotina de cuidados e paixão. Há quem a leia com tristeza; há quem, como eu, não se furte aos prazeres de certa rotina e da intimidade, fundamental num mundo de efemeridades e fast-food (valendo para o sexo).

Que mal há na rotina? Qual é o tamanho do medo que se tem dela? Por que razão, em certas declarações, a rotina surge sob uma aura negativa? Onde é que não há rotina nesta vida? O que será tão flexível que possa oferecer uma experiência nova por minuto? E por que razão alguém passaria pela vida fugindo dos protocolos?

Que alguém me acordasse às nove da manhã (às seis é demais para mim, confesso) e, carinhosamente, me chamasse para o café com um beijo sabor menta; que alguém tivesse o cuidado de me esperar sair de carro pelo portão, nestes tempos de assaltos a mão armada na porta de casa; que alguém me jurasse amor à meia noite, todos os dias (ou quase todos); que alguém viesse me contar das tempestades e das bonanças do dia, da semana, do mês, do ano; que alguém pudesse ser alguém ao meu lado. Isso não pode ser totalmente ruim.

Essa rotina do toque, do acerto, dos horários, das responsabilidades e da companhia (verdadeira) me lembra também uma canção de Frejat, Guto Goffi e Mauro Santa Cecília, "Por você", que também me parece uma declaração desbragada de amor, especialmente quando se declara que alguém "desejaria todo dia a mesma mulher". Missão impossível, neste mundo de inoperâncias do compromisso e do engajamento afetivo. Missão impossível, neste mundo das vitrines onde se expõem moças que nunca seremos nós. Isso não pode ser rotina ruim: desejar todo dia a mesma pessoa, porque, por definição, desejar não passa por sentir-se obrigado, mal-aventurado, infeliz, forçado. Desejar é propulsão. Desejo move. Desejo altera. Desejo promove. Desejo impulsiona. Desejo faz mirar adiante. E isso não pode ser má rotina.

Os pés frios embaixo do edredon, a pipoca com filme, a chuva lá fora e o banho quente aqui dentro, as roupas trocadas no armário, o colorido do varal a dois, os pratos sujos na pia, os copos com manchas de vinho barato (ou as gordas taças caras), os chinelos embaixo da cama, os respingos fora da pia ou do vaso sanitário. Nada disso escapa à descrição de uma rotina, que, no entanto, não precisa ser vivida como se fora condenação. Não é. Não deveria ser. Deveria ser desejo, carinho e cuidado. Deveria ser repetida não à maneira do castigo de Sísifo, mas à moda das compulsões de desejo, à toda, com gosto, o famoso "gosto de quero mais".

Rotina desgasta. Rotina enjoa. Rotina enoja. Rotina caleja. Rotina esgota. Rotina faz perder a noção do gosto. Essa é a rotina cárcere, alienada, alienante. Essa ninguém quer, de fato, mas mesmo ela pode viciar. Perdida, pode trazer lembranças que só se tornam saudade quando se avalia o prazer que poderia estar ali, embrulhado nos dias de tédio e nas noites de sonhar com outras rotinas. São todos rotinas. Não há quem viva sem elas, mesmo quando se adere a uma vida de descompromisso e pequenas febres. É preciso ter competência e fôlego longo para as rotinas. É preciso saber amar. É preciso amadurecer.

É na rotina que acontece o contraste com o inesperado. É na rotina que os gostos e os desgostos emergem. É na rotina que as pessoas se conhecem. Quem é alguém sem saber sua própria rotina? Estou para dizer que meu dia a dia verte horários, medos, desapegos, pequenos estilhaços e uma coleção de relógios de pulso. Em minha rotina cabem pessoas, comida, carro, segredos, anseios, trajetos, cumprimentos, tarefas, arremedos, quases e medidas exatas. Minha rotina me dá a medida do meu conforto, mas também do meu incômodo. Se algo escapa à minha rotina, eu me mordo. E se algo escapa também pode ser que eu experimente e goste. E pode ser que isso se torne parte da minha rotina, dali em diante. Ou que se transforme em um acidente, memória ruim, lembrança escura. Mas é na minha rotina que sei de mim e dos outros. É nela que seleciono o que sai e o que fica. Sem ela não sei para onde me movo porque não tenho referencial. Se não conheço as reações das partes do seu corpo, sua rotina, seu protocolo de afetos e calores, eu não sei o que fazer com você, quando está comigo. E por que não convidá-lo para minha rotina? Troquemos o hálito de hortelã pelo Halls cereja e estaremos combinados.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 15/7/2011

 

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