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Quarta-feira, 26/12/2001 Jotacê Paulo Polzonoff Jr Trinta e seis graus em Curitiba. Coisa rara, este calor. Quando vocês lerem este texto, o Natal já terá passado. O Natal sempre é passado. Nenhuma data é tão cercada de lembranças quando o Natal. Nostalgia, teu nome é Natal. Escrevo sobre esta data maldita desde que descobriram que eu sabia juntar um tanto quanto melhor que os demais o a com o b. Nunca, no entanto, pude escrever tão livremente sobre o real significado do Natal como agora. Claro que pouparei vocês de filosofias vãs; contentar-me-ei com mesóclise e tudo a vislumbrar meu pequeno passado em busca de Jotacê, um cara que anda meio esquecido. Tudo bem, eu sei que muitos de vocês estarão de ressaca quando lerem este texto, e por isso mesmo acrescento que ele será breve. Cá entre nós, vale a pena trilhar o caminho de descobrir quando é que Jotacê entrou na vida de cada um, mesmo que você seja mulçumano ou judeu. Sim, porque, num país cristão, Jotacê é uma presença constante. Até os cinco anos, que eu lembre, Jotacê não existia para mim. Às vezes fico me perguntando — porque não convém perguntar a um padre a esta altura do campeonato — o que teria me acontecido se eu morresse nesta época. Sim, porque, já que para mim Jotacê era uma abstração por demais ininteligível, eu era, por lógica, um ateuzinho loiro dos olhos azuis perdidos num futuro remoto. Será que o Inferno é um lugar cheio de crianças precocemente mortas? Lembro de uma das primeiras vezes que entoei o Padre-Nosso. Eu estudava num colégio de freiras que, no entanto, dava mais ênfase à santa que o nomeava, Madalena Sofia, do que a Jotacê. Em fila num pequeno pátio, lembro-me de Irmã Clementina, austríaca, ultra-direita, fazendo um grave discurso sobre o Fantástico da noite passada. Depois, mandava que todos rezássemos o Padre-Nosso. Isso a partir da primeira série. Antes disso, ateuzinhos que éramos. Aprontei algumas em natais dŽantanho. E aqui o Natal já vai adquirindo novamente aquele ar nostálgico que empobrece o texto ao mesmo tempo em que encarece a vida. A família reunida para o Natal em Maringá, no norte do Paraná. Calor, que do calor eu lembro com exatidão. Hipocrisia espalhada por toda parte, juntamente com os presentes de Natal. Menos o meu e da minha irmã, que mui convenientemente haviam ficado em Curitiba. Eu ganhara uma bicicleta naquele ano. Uma BMX Monark, o supra-sumo das bicicletas. Desta noite, contudo, três lembranças gritam mais que a bicicleta, doada a alguma instituição de caridade, há muitos anos. A primeira dá conta de Seu Roque, meu vodrasto. Um velhinho corcunda que vendia pipocas no centro de Maringá. Todos na família o odiavam e dele eu devo ter apreendido o dom da impopularidade. Não que ele fosse mau, claro; odiavam-no por aquela coisa católica do marido eterno, no caso meu avô-de-fato, que não cheguei a conhecer. Ele tinha um relógio de bolso que consultava incessantemente. Criança, gostava de escutá-lo contar histórias sobre qualquer coisa. Pronto. Fim da primeira lembrança. Na mesma noite, um tio bêbado fazendo discurso próximo da meia-noite. Jotacê deveria estar ali entre a gente — pelo menos era o que se dizia. Bêbado, o tio falava de Jotacê com a espontaneidade de um amigo de longa data. Quem dera àquele homem simples o dom de tamanha oratória? Não estivesse ele confinado nas barbas de Freud (é um caso extremo de edipianismo, mote para outro texto), poder-se-ia dizer que daria um ótimo advogado ou homem-de-letras. Capaz de disputar uma cadeira na Academia, em paridade com Zélia Gattai, eu exagero e rio da colocação infeliz. De qualquer modo, o tio bêbado fazia todo mundo chorar. Eu, que nem entendia muito de Jotacê, chorava também. Depois do fim do almoço do fatídico dia 25, mostrei um pouco da porção macaco que havia em mim. Queria andar de bicicleta, como todos os outros primos que haviam ganho uma na noite anterior. Não era uma questão de ganância, afinal, eu tinha uma bicicleta, só que ela estava a 400 km de distância. Pode-se dizer, contudo, que se tratava de vaidade, de exibicionismo e até de uma certa masculinidade precoce, porque eu queria mesmo era impressionar as meninas das ruas arborizadas de Maringá. Um primo não quis me emprestar a sua bicicleta e eu não tive dúvidas quanto a bater com a cabeça dele no muro de uma casa qualquer. Três pontos, muito sangue. O tio bêbado a me socorrer de meus pais. E esta terceira lembrança, para meus pobres anais. Anos mais tarde, Jotacê seria apenas uma piada para mim. Digo, não o Jotacê em si, mas a simbologia que ele carrega. Como a hóstia, por exemplo, que eu, sem fazer Primeira Comunhão nem nada, comi com gosto numa igreja qualquer. Eram anos estranhos, aqueles: em mim, despontava o homem; no mundo, dúvidas. O velho clichê da puberdade. Jotacê não tinha sentido, por isso era mais fácil negá-lo. Ajudou muito o fato de eu ter ido a alguns cultos de uma igreja evangélica e não ficar nada satisfeito com o discurso de um pastor e um rabino — é, um rabino! — no púlpito. Um pouco mais além e eu seria um completo ateu, o que, por lógica, se deduz que um adolescente imberbe tem a mesma cabecinha oca de uma criança de cinco anos. Só que sem os cabelos loiros e os olhos azuis, transformados, á época, em cabelos e olhos castanhos — nada mais vulgar, portanto (hoje a fronte é mais vasta, a calva mais generosa, os olhos mais perturbadores). Jotacê reapareceu há pouco tempo. Garanto que não foi numa noite de Natal. Reapareceu como homem, e não como Deus. Ressurgiu como força organizadora de uma sociedade, e não como filho dEle. Reavivou-se como esperança de crença, e não como dogma inconteste. Talvez seja até porque novamente dei de cara com Jotacê é que odeio tanto o Natal e sua bondade de supermercado, sua fé de uma só noite, seus discursos cheios de uma pieguice viscosa, suas bolas de vidro que refletem corpos balofos, entupidos de gases, seus papais-noéis à vista ou em três vezes no cartão. Não, pouparei os meus parcos leitores do discurso. Afinal, este texto era só mesmo para reencontrar Jotacê e algumas lembranças que o tempo tratou de açoitar. Paulo Polzonoff Jr |
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