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Segunda-feira, 1/8/2011
Moda em 20 textos
Adriana Baggio

É bastante frequente, nos livros sobre moda, a associação com os fazeres da costura. Afinal, apesar de não ser um fenômeno restrito às roupas, é nelas que os conceitos da moda mais se explicitam. O livro Moda em ziguezague: interfaces e expansões (Estação das Letras e Cores, 2011, 232 p.), uma coletânea de artigos organizada por Cristiane Mesquita e Rosane Preciosa, inscreve-se nesta tradição.

Neste livro, a associação foge ao quase-clichê e tem fontes mais nobres: "Nossa proposta é inspirada pelo olhar de Deleuze sobre a última letra do alfabeto: o desenho do Z. Ângulos (...) nos possibilitam relacionar potencialidades e singularidades díspares, transversal que expande os campos precedentes", dizem as organizadoras.

Realmente, podemos chamar de díspares as abordagens sobre moda nos 20 artigos do volume. A justificativa estaria na necessidade desta disciplina por intercessores diversos, que lhe permitam se expandir conceitualmente. A moda, então, é desinstalada dos "lugares consagrados em que tomou assento" - como os estudos que a veem sob o prisma da distinção (moda como status) e diferenciação (moda como estilo e identidade) - e arremessada em territórios mais estranhos.

A disparidade acontece também nos gêneros textuais escolhidos pelos autores para apresentar suas ideias. O ímpeto de uma comparação qualitativa, que talvez não se apresentasse em coletâneas mais uniformes, é despertado aqui por conta dessa heterogeneidade.

Evidentemente, a qualidade de cada artigo não é intrínseca ao gênero textual. Mas minhas expectativas acabaram por valorizar especialmente os trabalhos de pesquisa, seja empírica ou teórica. Puro preconceito, do tipo que o livro pretende quebrar, já que o objetivo da diversidade, como dizem as organizadoras, é justamente verificar como a moda "se comporta, assediada por abordagens que diagramam outros trajetos, que, estimamos, apontem para outros passeios conceituais, que experimentam tortuosidades, obliquidades, ziguezagues".

Estilo literário e abordagens históricas
Os textos são organizados por afinidades, seja de gênero, seja de tema. Os dois primeiros, por exemplo, flertam com estilos literários. Em "Acerca do ziguezague", Luiz Orlandi fala sobre este movimento por meio de um diálogo ("o caráter clandestino dessa aventura impede a explicitação dos nomes dos partícipes") acontecido durante andanças ao pé da serra da Mantiqueira. Em seguida, Annita Costa Malufe, em "Modulações", comenta trechos de obras literárias que falam sobre roupas e seus papéis na identidade dos personagens ou nos limites que impõem aos seus corpos.

Os próximos trabalhos têm aportes na História e são mais alinhados às minhas expectativas. "A moda na história é roupa inacabada", de Rita Andrade, fala sobre o tratamento das peças de vestuário como objetos históricos e museológicos. Um dos pontos que ela aborda é a interferência de questões institucionais - seja de curadoria ou de processos - nas roupas expostas em museus ou tomadas para representação de um período histórico. Um dos problemas, diz a autora, é que "a datação de uma peça, bem como as possíveis adulterações realizadas no objeto, ficam comprometidas se a restauração for muito invasiva, a ponto de reconstruir ou de excluir dele algum tipo de informação, como linhas ou fios soltos, fragmentos de tecido dentre muitas outras coisas".

Já Maria Lucia Bueno apresenta uma pesquisa - a minha preferida neste livro - sobre o papel das revistas de moda na internacionalização de um estilo de se vestir, e por extensão, de um estilo de vida. Em "Alta-costura e alta cultura. As revistas de luxo e a internacionalização da moda (1901-1930)", fruto parcial dos estudos de pós-doc da autora, vemos como a forma de representação dos trajes nas revistas - por foto e por ilustração - infuenciaram a produção dos estilistas. A indefinição estética das criações de vanguarda eram melhor percebidas pelo público por meio dos traços irreverentes de importantes artistas da época. Hoje vemos essa técnica utilizada pela revista Lola, que em cada edição traz um editorial com roupas e acessórios representados por ilustrações.

Cibercultura e arte
O terceiro grupo de artigos apresenta intersecções com os temas da cibercultura. "Transterritorialidades, modas e espaço urbano", de Márcia Couto Mello e Ariadne Moraes Silva, mostra como os nômades contemporâneos conferem novos sentidos aos espaços das grandes cidade por meio da moda. Em "Moda e cultura tecnológica", Suzana Avelar discute como o modo de vida em uma sociedade tecnológica, e não apenas os seus recursos e aparatos, interferem na criação e uso da moda. Um pouco mais distante, mas ainda nesse conjunto, Peter Pál Pelbart fala dos "Desvios do tempo".

O maior grupo temático do livro é o que relaciona moda e arte. Como são cinco artigos, as sobreposições me parecem inevitáveis, principalmente no levantamento de manifestações e exemplos. Para os interessados, é um prato cheio: temos "Considerações sobre fotografia, moda e arte", de Afonso Rodrigues; "Caminhos, cruzamentos, passagens, pontes e encruzilhadas: possibilidades na relação arte e moda", de Marcos Moraes; "Museu, arte e moda", de Ricardo Resende; "Moda e arte: um cruzamento possível de linguagens", de Ricardo Oliveros; e "A moda performance - alguns apontamentos", de Lucio Agra.

Marginais e antropológicos
"Do objeto de moda à narrativa", de Eduardo Motta, mostra como o que se fala sobre a moda, seja na publicidade ou na imprensa, tem tido mais valor do que o objeto em si. Logo depois desse artigo, três outros abordam a relação da moda com segmentos "marginais": "Moda à margem: Tadej Pogacar e a Daspu na 27ª Bienal de São Paulo", que é uma entrevista realizada por Cristina Freire com o artista; "Daspu - zonas de passagem", de Elaine Bortolanza, em uma linguagem que beira o poético; e "Moda bandida", de Fernando Marques Penteado.

O último grupo de artigos apresenta relações com estudos antropológicos: "Notas sobre conhecimento e mestiçagem na América Latina", de Amálio Pinheiro; "Muito além da minissaia", de Nizia Villaça - que me interessa particularmente pela abordagem da roupa como um novo lugar das tensões do "jogo de poder" -; "Políticas da hibridação: evitando falsos problemas", de Suely Rolnik; e o excelente "Ensaio sobre a cópia na era da hiper-reprodutibilidade técnica", de Ludmila Brandão.

Neste texto, a autora mostra como o conceito negativo de cópia, tão discutido nos dias de hoje, é algo construído. E provoca: "Do mesmo modo que as elites se servem de práticas e objetos populares, traduzindo-os conforme seus critérios de gosto e conhecimento, fazendo suas cópias (!), que aqui não são consideradas "cópias", mas "releituras", particularmente no caso da arte, desse mesmo modo, as classes populares se servem de práticas e objetos concebidos pelas elites econômicas, traduzindo-os para o seu universo de sentidos".

Alinhavando
Não resistindo à tentação das metáforas relacionadas ao paradigma da moda, diria que este livro é muito bem costurado. Como o ziguezague também serve para chulear as bordas do tecido, evitando que se desfie, acredito que aqui ele é bem aplicado. Não encontramos fios soltos, mesmo com a diversidade de temas e estilos dos textos.

Porém, assim como reconhecemos a boa roupa pelo acabamento impecável, penso que a editora deveria tomar mais cuidado com a revisão, para que a excelência do conteúdo não seja prejudicada por problemas de apresentação. "Baktin" sem h, "Jack, o Estuprador" (ele foi estripador), "bateclava" ao invés de balaclava e Matt Dillon no lugar de Matt Damon, além de alguns probleminhas de acentuação e digitação, são como pequenos esgarçados sobre os quais um consumidor não hesitaria em reclamar se os encontrasse na bela roupa nova que acaba de comprar.

Adriana Baggio
Curitiba, 1/8/2011

 

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