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Sexta-feira, 19/8/2011
Por que Harry Potter é boa literatura
Fernanda Prates

"Ler por diversão é o que todos nós deveríamos estar fazendo. Não digo que todos devam ler livros de 'menininha' ou thrillers (embora, caso você queria fazê-lo, tudo bem, porque eis algo que ninguém vai te falar: se você não ler os clássicos ou o romance que ganhou o Booker Prize deste ano, nada de ruim vai acontecer com você; mais importante, nada bom vai acontecer se você lê-los); eu simplesmente digo que virar páginas não deveria ser como atravessar um poço de lama grossa. Todo o propósito dos livros é que sejam lidos, e se você acha que não consegue fazê-lo, a culpa pode não ser da sua inadequação. 'Bons' livros podem ser bem ruins às vezes."
Nick Hornby, em Housekeeping vs. the Dirt

E foi assim, com o mesmo insight despretensioso típico das delícias que são seus livros, que o lindo do Nick Hornby me inspirou a falar sobre o aguardado/lastimado/festejado fim da franquia Harry Potter. A não ser que você more em uma choupana sem acesso a eletricidade e água encanada, deve saber que o último filme inspirado pelos livros de J.K Rowling estreou. E, se você tiver filhos, sobrinhos ou um perfil em qualquer rede social, deve ter observado (e julgado silenciosamente) o luto de milhares de crianças, jovens e uma embaraçosa quantidade de trintões desolados.

Vergonha alheia à parte, a lamúria dos viúvos de Potter desencadeou a implacável fúria dos Harry Haters (perdão pelo estrangeirismo, mas me perco para uma boa aliteração), membros honorários da velha tropa de patrulheiros da "boa literatura". Incumbidos da árdua tarefa de determinar o que podemos ou não podemos apreciar e nos salvar do tão temido abismo da alienação cultural, a tropa aproveitou o ensejo para pregar, mais uma vez, que Harry Potter não é "literatura de verdade", que "não tem valor cultural" e que a terrível J.K Rowling é, basicamente, uma encarnação de satanás enviada à Terra com a única missão de sugar as almas de nossos infantes com sua mal-fadada frivolidade.

Embora deva admitir que a visão de marmanjos de 20 e poucos anos trajando capas e aplaudindo chorosamente um filme sobre bruxos púberes seja mesmo um pouco esquisita, coloquemos as coisas em perspectiva. Não preciso entrar no mérito do "fenômeno cultural", uma vez que estamos todos cientes do arrebatamento que a franquia Harry Potter causou ― em todo caso, o castelo no qual J.K está morando está aí para nos lembrar. A questão é que, a despeito (ou por causa?) de todo este sucesso, Rowling continua sendo um alvo fácil para os nobríssimos defensores da "boa literatura", sempre ágeis na hora de julgar e criticar os livros "de fácil digestão" ― como se isso fosse, sabe-se lá por que, uma coisa ruim. Considerando-se o tratamento histórico dado a produtos culturais de alto faturamento, é bem fácil para o nobre Sr. "Só-fui-lido-por-seis-pessoas-incluindo-minha-mãe" atacar J.K Rowling justamente pelo seu maior trunfo: ter atingido a tantas pessoas. Ser mainstream ― e, por consequência, economicamente viável ― é considerado um demérito cultural, fazendo com que a produção de Rowling tenha se configurado como alvo perfeito para os ataques raivosos da "nata intelectual".

Até aí, nada de muito surpreendente. O fato verdadeiramente curioso do discurso é que os patrulheiros são as mesmas pessoas que vão a público para lamentar os baixíssimos níveis de leitura. São estes mesmos caras que vão apertar o pause em seus CDs de nobres obscuridades do Caetano (nada dessa porcaria popularesca de "Leãozinho"), e bradar o quão vergonhoso é o fato de que nossas crianças simplesmente não leem. É, no mínimo, paradoxal que aqueles que publicamente advogam a favor da disseminação da literatura se portem como se literatura fosse algum tipo de privilégio, fazendo questão de ― perdoem o meu francês ― cagar regras sobre o que vale e não vale como leitura. Será que eles realmente acham que o jeito de atrair o garoto de 11 anos para longe dos robôs zumbis de seu Xbox é expô-lo às vicissitudes da conturbada relação de Capitu e Bentinho? Façam-me o favor. Esta retórica recheada de julgamentos expõe um discurso frágil, digno de um garotinho de 13 anos que simplesmente não quer que todas as crianças do bairro participem de sua exclusivíssima casinha na árvore.

Por outro lado, tornou-se até óbvio comentar que livros "fáceis" como Harry Potter, muitas vezes, abrem as portas para outros livros. No mínimo, mostram para criancinhas amedrontadas que letras não mordem e que trabalhar um pouquinho para construir sua própria fantasia, em vez de recebê-la mastigadinha em HD, pode ser, no fim das contas, um esforço delicioso. Esta noção do livro fácil como "droga de passagem" para a literatura mais pesada é crescentemente aceita até mesmo nas escolas. Contudo, mesmo aqueles pais que encorajam a leitura de produções como Harry Potter e Crepúsculo muitas vezes o fazem com a mesma postura condescendente dos patrulheiros. Agem na esperança de que o filhinho de 10 anos que lê Potter hoje venha a se tornar um adolescente de 18 lendo Crime e Castigo amanhã. Aos 21 anos, sou a prova viva de que isso não é necessariamente verdade. E ― eis a magia de tudo ― quem disse que é uma coisa ruim? Posso afirmar, sem nenhuma vergonha, que nunca li meia página de qualquer produção russa quilométrica. E nem pretendo. Por quê? Simplesmente porque não é de meu interesse. Novamente, uso Nick Hornby aqui: "virar páginas não deveria ser como andar pela lama grossa." E, para muitos de nós, essa é a sensação ao abrir um exemplar de Guerra e Paz. Por que dedicar horas e horas de seu dia a uma tarefa que simplesmente não lhe dá prazer apenas para acrescentar aquele título ao seu currículo quando você poderia estar devorando uma aprazível cópia de, sei lá, O Doce Veneno do Escorpião?

Harry Potter é legal. Simplesmente. É "fácil", e "digerível" e todas essas coisas que, por motivos que desconheço, ganharam um tom tão pejorativo em meio aos olhares atravessados da "elite cultural". Embora não ache que todo e qualquer adulto seja capaz de abrir uma cópia e apreciar ― afinal, a linguagem é de fato voltada para um público mais novo ―, muitos podem se surpreender com o quão cativante é o elaborado universo fantástico que J.K Rowling conseguiu, com competência, criar. Conflitos adolescentes à parte, mesmo o mais amargo dos leitores pode reconhecer a criatividade de J.K, magistral em sua capacidade de nos transportar para uma realidade alternativa ― sem nos deixar em um coma induzido por tédio no meio do caminho. Tratar Harry Potter como um "caminho" é uma injustiça com a obra. Harry Potter é, por que não?, um "fim" também. É um produto elaborado, amarrado e capaz de algo que a grande maioria dos livros não consegue fazer: cativar o leitor. E se isso não é capaz de qualificá-lo como "boa literatura", não sei o que é.

Fenômenos como Harry Potter, de certa forma, servem justamente para lembrar que há, sim, muito preconceito ― e que ele é tão entranhado que muitas vezes sequer notamos. Em sua avidez por julgar, os guardiões da "alta cultura" criam um índex que nós, tolinhos, acatamos. Se por um lado cada vez mais temos pais e professores "aceitando" a "baixa literatura" como uma forma de apresentar livros aos pequenos, por outro os terrivelmente maniqueístas títulos de "bom" e "ruim" continuam sendo propagados como verdades universais. Continuamos nos julgando, culpados, como se estivéssemos cometendo crimes toda vez que apreciamos um capítulo de Dan Brown. Vivemos isso na literatura, na música, no cinema. Simplesmente nos submetemos. Assim como criancinhas obesas contrabandeando sorvete de chocolate para o acampamento de gordos, lemos os Crepúsculos da vida, envergonhados, recheados da satisfação culpada de quem está corrompendo alguma regra. Quanta perda de tempo. Nessas horas, tenho que concordar com certa autora controversa: "Acho que há muita hipocrisia e um pouco de medo." Quem diria que Raquel Pacheco, vulgo Bruna Surfistinha, estaria tão certa? Nós é que estamos equivocados.

Nota do Editor
Leia também "Em defesa de Harry Potter"

Fernanda Prates
Rio de Janeiro, 19/8/2011

 

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